Nessa quinta, na televisão, uma mulher bem articulada, chamada Josicleia, contou que matou um homem, acidentalmente, com uma faca, em Salvador. Ela está grávida. O morto é Lucas, marido de Josicleia, pai do bebê que ainda está na barriga. Numa fala longa e bastante organizada, ela passeia por diferentes emoções, explica – detalhadamente – o contexto daquela relação e descreve as últimas horas com o homem agora morto.
O que ela diz é que feriu Lucas ao tentar se defender, enquanto era agredida por ele, na cozinha do casal. Grávida. De acordo com ela, uma situação recorrente que, desta vez, resultou em morte. Antes de fazer a importante pergunta “eu ia esperar ele me matar?”, Josicleia fala sobre a violência crescente no casamento. Mostra hematomas no braço. Daí, atribui essa violência ao abuso – por parte do marido – de bebida alcoólica dizendo que “quando ele bebia, ficava transtornado”.
Eu não sei se Josicleia fala a verdade, nem tenho o poder de condenar ou absolver alguém. Mas eu acredito nela. Veja, não tenho nenhuma outra informação, eu não conheço detalhes do caso. Acredito, apenas, por uma questão de probabilidade. Porque é isso que acontece todos os dias, só que, em quase todas as vezes, somos nós que morremos no final. Se a versão dela se confirmar, a única diferença é que Josicleia não “esperou” que aquele homem a matasse. Talvez por isso tenha sido aplaudida na saída da audiência de custódia. Entendo perfeitamente.
Do indivíduo Josicleia e do indivíduo Lucas eu não sei mais nada. Então, me retiro do caso, mas sigo no enredo clássico. Um negócio complicado que envolve pressão social, além de vulnerabilidades financeiras, psicológicas e emocionais. Não posso julgar mulheres que permanecem em relações de abuso e violência. Lamento demais, mas julgar seria sacanagem. Escrevo aqui da minha casa confortável, empregada, bem alfabetizada, dona do meu nariz e com anos de terapia nas costas. Muita coisa me garante “não precisar de um homem do lado”, poder mandar qualquer um se lascar. Mas nem sempre foi assim pra mim. E não é assim pra toda mulher. Ainda.
Sair de um relacionamento violento, para muitas, é um desafio de várias etapas. Talvez, a mais importante e difícil seja a primeira: perceber a violência do parceiro (ou pretendente) e, depois disso, não minimizá-la. Nem justificá-la, como Josicleia faz ao atribuir ao consumo de álcool a personalidade agressiva de Lucas. Assim, ela isenta o humano de culpa. É essa percepção – de que mesmo sendo agressor, homem ainda é “coitado” – que faz com que muitas esposas e namoradas fiquem – até empenhadas num “cuidar” ingênuo e improdutivo – em situações perversas. “Salvar o homem” é o nome da missão encarada por muitas de nós, mesmo quando a “doença” dele é algo que nos coloca em risco.
Lembro de uma amiga psicóloga, que trabalhava num CREAS, e um dia me disse que eu devia ter algum “trauma”, depois de eu ter contado que terminei um relacionamento por causa de um grito do homem que estava comigo. Além de, a partir dali, achar que ela não tinha condições – técnicas e psíquicas – de exercer a função que assumia (acolhimento a mulheres vítimas de violência), fiquei pensando no trauma coletivo que faz com que muitas de nós façam exatamente o contrário do que fiz. Que fiquem e se achem merecedoras de desacatos, descuidos e violências de todo tipo. Por que não vão embora?
Entre outras coisas, sim, porque traumatizadas. Historicamente mal amadas. Se sou capaz de entender (e sentir no meu corpo) que ninguém tem o direito de me destratar, é rota do indivíduo, mérito meu em minhas privilegiadas circunstâncias, inclusive amores, por sorte, bem-sucedidos. Sempre um susto para os antagonistas que ainda esperam de qualquer mulher o papel de acolher, compreender, baixar o tom, deixar pra lá. Ficar, apesar de. Esperar. Cuidar. Insistir. A autoestima feminina ainda é construída muito nas academias, clínicas de estética e lojas de roupas. Raramente, no olhar pra dentro de reflexões e sérios processos terapêuticos. Essa autoestima de purpurina é, em geral, superficial, insuficiente, toda cheia de buracos e não protege de nada.
Ainda nos devemos amor por nós mesmas. Do tipo real, cuidadoso, profundo, desse que derramamos, abundante, sobre nossos homens e filhos/as. Mulheres são capazes de matar e morrer pra defender as crias. Também de cuidar, por toda a vida, do parceiro amado que adoeceu. Observe nos hospitais e até presídios. Quem é que fica? Não precisamos que estejam lindos e bem vestidos. Quando amamos, é também na feiúra, no erro, na doença. De dentro pra fora. De amor que sabe amar. Mas não conseguimos entregar autoestima dessa qualidade, nem quando, claramente, é isso que pode salvar nossas vidas.
Enquanto construímos esse amor real por nós mesmas, toda hora surge um aspecto sobre o qual pensar. Nesse caso, há pelo menos, duas coisas a aprender, que podiam ter ajudado Josicleia a não morrer, mas também a não se tornar uma assassina. A primeira é que pessoas violentas não são coitadas. E dão sinais. Quebram objetos, formulam frases invasivas, têm acessos de ódio e vão num crescendo até que ultrapassam aquela barreira: dizem/fazem coisas que temos vergonha de contar. Depois disso é só desgraça. Então, é importante parar nos primeiros sinais, nos primeiríssimos. É abandonar. Antecipar o fim, antes que ele chegue, ao mesmo tempo em que aumenta os números das estatísticas.
A outra coisa a aprender é que alcoolismo significa ser viciado/a em bebida alcoólica e não, necessariamente, agredir alguém. Se agride é que naquela pessoa há uma natureza violenta que se liberta quando o ambiente externo é propício e a química ajuda a exacerbar. Se essa natureza violenta se manifesta em insultos direcionados à mulher, se materializa em murros na mesa do casal, é que esse é o espaço no qual aquele homem se sente autorizado a despejar o próprio inferno. Quer testar? Pergunte a um “só fica violento só quando bebe” se, quando ele bebe, tem vontade de bater no chefe. Ou na polícia. Tem nada. Se tiver, não bate. Duvideo-dó. É só em mulher mesmo. E em crianças, claro. Porque “podem”, né?
Culpado é quem agride. Sempre. Do mesmo modo, culpado é o ladrão e não quem foi roubado. Mesmo assim, a gente guarda bem a carteira e não leva o celular pro Carnaval. Mulher tem que se armar, portanto. Bem antes de precisar de uma arma real pra se defender do inimigo que dorme ao lado. Fosse dona de si, Josicleia não teria suportado a rotina de agressões que relata. Fosse senhora dela mesma, fosse emancipada, de fato, se libertaria bem antes de dar aquela facada. Compreendo toda a circunstância e repito: não julgo. Mas me entristece a certeza de que essa tragédia seria evitada se Josicleia – por tantos motivos ainda tão nossos – não precisasse de um homem do lado.
*Flavia Azevedo é articulista do Correio, editora e mãe de Leo