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Famílias baianas tinham ‘agenda culinária’ com um prato pra cada dia da semana

Reprodução

Uma cerveja antes do almoço é muito boa pra ficar pensando sobre como surgiu, em Salvador e região, a tradição de degustar a denominada comida baiana às sextas-feiras. Para quem não sabe, por não ser daqui ou não prestar atenção, quase 100% dos restaurantes da capital, nesse dia, serve algo com azeite de dendê, prática também comum em muitas residências. Mas por quê?

Após uma busca por respostas plausíveis que durou semanas, encontrei um ensaio de explicação numa relíquia perdida na Biblioteca Central da Universidade Federal da Bahia (Ufba), em Ondina. Com o autoexplicativo título ‘Os Sete Dias da Cosinha Bahiana’, o folheto de cinco páginas, lançado em 1956, indica que grande parte das famílias seguia uma certa agenda culinária, tendo um rango específico para cada dia da semana.

“Toda segunda-feira, o prato escolhido é a quiabada; na terça-feira, o prato preparado é o cozido; na quarta-feira, o prato determinado é o feijão de leite com bacalhau; na quinta-feira, o prato indicado é a feijoada; na sexta-feira, o prato ritual é o peixe [com o dendê facultativo]; no sábado, o prato consumido é a frigideira e aos domingos o prato servido é a galinha”, escreve um tal Francisco Gomes de Oliveira Neto na publicação que faz parte da coleção Estudos Bahianos.

Nada mudou
Antes de registrar os hábitos gastronômicos do dia a dia das famílias – o livreto pondera que havia uma “adaptação” que variava de acordo “com o grau do meio social” –, Chico traz um quinhão da autoavaliação que a elite econômica local tinha em meados do século passado, com perspectiva distante de problematizar o período escravista.

“A família baiana, a mais ilustre e brasonada do Brasil, deixou nome em todos os setores das atividades sociais. (…) Famílias patriarcais, nobremente instaladas nos solares, tiveram fama nos séculos já decorridos e seus descendentes ainda rememoram o passado austero e aristocrata, não só da estirpe dos grandes titulares da Valorosa Cidade do Salvador, como da plêiade de senhores de engenhos do recôncavo”, escreve.

Apesar disso, não deixa de referenciar que “a genuína comida baiana tem sua origem no cardápio africano, com intromissões de pratos da culinária europeia”, e ainda menciona, junto aos santos católicos, os orixás correspondentes a cada dia e comida [leia comentários e receitas transcritos no final]. 

Chama a atenção também o trecho em que afirma conservar-se “inalterável a cozinha baiana, cujo sabor dos seus pratos até hoje têm renome em todo o país.”

“Comeu-se e ainda come-se muito bem na Bahia. (…) Mas, carece que se diga e fique bastante esclarecido, o que se serve na mesa baiana não está terrivelmente adubado de condimentos picantes ou encharcados de azeites variados”, adverte o escritor sobre algum boato externo do tempo de Dom Corno.

Tudo mudou
Mas se “nada mudou” durante décadas até 1956, por que quase 70 anos depois há tanta diferença? Segundo o antropólogo Ericivaldo Veiga, professor aposentado da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), parte do reforço dessas tradições partia de intelectuais que buscavam expressar uma identidade particular à Bahia.

“Dorival Caymmi e Jorge Amado – depois João Ubaldo com a moqueca de baiacu – oferecem receitas didáticas de como preparar vatapá. Assim, comidas de azeite da cozinha baiana são divulgadas a nível nacional, e pratos como acarajé, vatapá, bobó de camarão se juntam à rainha feijoada como símbolos identitários da cultura nacional”, pontua o professor, antes de citar outro aspecto que ia na mesma toada.

“Tentou-se institucionalizar o hábito de se vestir nas cores simbólicas de cada orixá, a cada dia da semana: na terça-feira a roupa era azul por ser o dia dedicado a Ogum; sexta-feira, dia de Oxalá, a roupa é branca, e por aí vai… Mas tanto a tradição de uma comida para cada dia da semana como a cor da roupa parece não ter sido incorporada o suficiente para tornar-se um traço identitário duradouro”, ou seja, foi quase tudo sumindo, sobrando a sexta-feira com a roupa e o rango e, em dias variados, a feijoada e o cozido.

Mas o que provocou essa perda gradual? “Várias situações: as condições financeiras das famílias não permitiam tanta rotatividade de pratos na mesa popular; as mudanças de hábitos alimentares com a presença de alimentos industrializados no mercado já modifica os modos de se produzir o alimento, especialmente quando se lida com uma cozinha de produção tradicional como foi a cozinha afro-baiana na sua origem sociocultural”, sugere Ericivaldo Veiga.

Tradicional almoço de “comida baiana” nos dias atuais (Foto: Angeluci Figueiredo/Arquivo CORREIO)

Digestão
Para o pesquisador Milton Moura, professor de História na Ufba, é possível compreender a manutenção da comida baiana às sextas e, o que também é comum, a feijoada nos finais de semana, sob a perspectiva laboral.

“Talvez isso tenha ocorrido por ser a sexta já o começo do fim de semana. E não se costuma fazer comida de azeite em poucas quantidades, para pouca gente. A tradição da feijoada nos fins de semana se deve ao tempo de preparo dessa comida, bem como às exigências da digestão. É uma comida gordurosa. A feijoada completa, com uma quantidade considerável de gordura animal, sobretudo suína, é pouco compatível com o trabalho logo após, sobretudo o trabalho mental, intelectual. Sentar diante do computador depois de um prato generoso de feijoada não funciona”, analisa.

Sobre a influência religiosa no rango de sexta, parece estar pautada apenas na tradição católica de evitar carne neste dia. Nada a ver com o candomblé.

“Não está relacionado a Oxalá, cujos filhos não comem dendê nesse dia. (…) E não se prepara e consome comida de azeite como uma afronta aos preceitos do orixá. É um hábito, um costume, simples assim. Quem tem preceito ou interdito – quizila, na linguagem do candomblé – pode estar nesse ambiente, mas não consome comida de azeite. É sinal de delicadeza, atenção e respeito preparar uma comida sem azeite para essas pessoas filhas de Oxaguiã ou Oxalufã”, conclui Moura.

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Confira a transcrição das receitas (em português atualizado) e comentários sobre os pratos que compunham ‘Os Sete Dias da Cosinha Bahiana’ há sete décadas. [Destaques para os comentários sobre a feijoada carioca, que o autor sugere nem existir naquela época, e o sábado como dia oficial da faxina].
 

  • Segunda-feira: que o vulto chama “Dia de Branco” porque é aquele que o patrão determina, ordena e manda no trabalho ou no rito afro-brasileiro, “Dia de Omolu”, que corresponde a São Lázaro; o prato adotado é a quiabada. Os nossos livros de culinária, os mais lidos não se reportam a confecção de apetitosa comida, assim, in D. Benta a sua autora não se refere ao preparo dela, e J. Vianna, no Caderno de Xangô, indica uma maneira errônea de fazê-la. A quiabada, como o nome está dizendo, tem por base o quiabo que é cortado em rodelas e depois em cruz; põe-se carne de boi que também é cortada em pedacinhos, porque tem de ser misturada com o quiabo. Temperos comuns, porém grande quantidade de limão para cortar a baba do quiabo. A quiabada é acompanhada de angu, que se serve quente. Molho de pimenta verde.

  • Terça-feira: dia de Santo Antônio ou de Ogum; é servido o cozido composto de dois pratos; um para as carnes e outro para as verduras. O primeiro contém carne de porco fresca (boi) e charque (carne de sertão), linguiça e toucinho; no segundo estão dispostas as verduras: abóbora, quiabo, maxixe, jiló, couve, repolho, chuchu, banana da terra, batata doce, aipim. Em uma terrina está o pirão de farinha com caldo do cozido com tempero. O molho é o comum, isto é, pimenta, limão, cebola, alho, um pouco de sal e água quente.

  • Quarta-feira: dia de São Jerônimo ou Xangô. O prato indicado é o feijão de leite de coco e bacalhau confeccionado com esmero. O feijão escolhido é o preto. Após ter cozinhado o feijão passa-se o mesmo na máquina, separa-se em seguida a casca na escumadeira, depois põe-se o leite de coco e o açúcar e leva-se o alimento ao fogo. O preparo do bacalhau procede-se da maneira vulgar; para o acompanhamento do feijão, faz-se com o bacalhau um ensopado. Serve-se com arroz branco.

  • Quinta-feira: dia de S. Miguel ou Oxóssi e o prato predileto é a feijoada que se encontra em casa de todas as classes sociais. A feijoada baiana difere da mineira e da pernambucana; no Rio de Janeiro e nos estados do Sul não se conhece a feijoada propriamente dita, apesar de se consumir o feijão em larga escala. O feijão empregado para o prato é conhecido pelo nome de “mulatinho”. As carnes que compõem a feijoada são: carne verde (de boi), de porco, carne de salsa e o toucinho. De referência aos condimentos, entram na combinação o sal de cozinha, alho, cebola, hortelã, cominho e vinagre. Para acompanhamento: arroz branco e farinha cessada; o molho de pimentas maduras. É uso comer a feijoada com banana de prata e após a refeição chupar uma laranja para facilitar a digestão.

  • Sexta-feira: dia de Nosso Senhor do Bonfim ou Oxalá, dia de guarda porque não se come carne de boi; segue-se o princípio religioso; abstenção completa. Serve-se então o peixe que pode ser apresentado à mesa frito, de escabeche, ensopado e de moqueca. O peixe frito e o ensopado come-se com arroz branco, acompanhado de batatas, chuchu, maxixe e às vezes jiló, segundo o gosto da casa. À maneira escabeche, mais fina, lança-se mão do arroz branco e ervilhas; a moqueca com farofa d’água fria ou com azeite de dendê.

  • Sábado: dia de Nossa Senhora da Conceição ou Iemanjá – é o escolhido para o asseio da casa. Diz-se que após a limpeza do lar, em horas de sossego, Nossa Senhora vem visitá-lo para verificar se de fato os cômodos estão varridos e tudo se encontra em seus devidos lugares para depois lançar a sua bênção. No sábado é que se distribui óbulos aos pobres, daí o ditado: “Esmolas, só em dia de sábado”. Neste dia é que a patroa faz a dispensa para a semana, é o abastecimento que se refaz, os principais gêneros alimentícios que se compra de conformidade com a necessidade da cozinha. O prato do dia é a frigideira que varia, pois pode ser de carne de boi ou de porco, de camarões, caranguejos, bacalhau, de andu com linguiça, cebolas e azeitonas, coberta de gema de ovos.

  • Domingo: dia de São Domingos ou de Oxaguian; o prato é a galinha, que pode ser preparada de variadas maneiras como assada, ensopada, de molho pardo e de xinxim. O arroz que acompanha o prato pode ser branco ou corado; é facultado o uso da farinha e da pimenta. Famílias há que no domingo dão almoço “ajantarado”, isto é, uma refeição lauta, porém única feita neste dia; assim termina os Sete Dias da Cozinha Baiana.

*Agradecimento especial a Dona Maria Alice e a Glauber Moreira, que encontraram o folheto-relíquia no Memorial da Ufba.

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