Na sequência da vitória de Trump e da influência de Elon Musk na campanha eleitoral e agora na Administração, o The Guardian tomou uma decisão drástica: o jornal britânico abandonou a plataforma X (o antigo Twitter, redenominado desde que Musk passou a ser proprietário da rede). De acordo com o jornal, o X transformou-se numa rede tóxica, promotora de conteúdos racistas e de teorias da conspiração, e o seu proprietário tem utilizado a plataforma para formatar o discurso político. O The Guardian reconhece que as redes sociais são importantes para os meios de comunicação, enquanto tornam possível alcançar novas audiências. No entanto, neste momento a direção editorial considera preferível que os leitores se dirijam diretamente ao site do jornal, onde o jornalismo está disponível para todos.
O The Guardian é o caso mais significativo de uma tendência que se tem feito sentir nos últimos tempos. Desde que Musk adquiriu o X, os utilizadores têm diminuído – nos EUA, a queda é da ordem dos 30% – e só no dia seguinte às eleições norte-americanas, 280 mil pessoas abandonaram a plataforma. Os resultados financeiros também estão longe de ser famosos: pese embora a obscuridade das contas da empresa, o valor do X terá caído 75% nos últimos dois anos. O que pouco importará a Musk, beneficiário de contratos de milhares de milhões com o Estado norte-americano e agora transformado num gigantesco conflito de interesses ambulantes.
Existem de fato boas razões para abandonar o X, hoje uma miragem do que foi o Twitter. Há cerca de 15 anos, quando abri a minha conta, a informação chegava mais cedo no Twitter, com opiniões livres e com ângulos mais provocadores e interessantes do que os dos media tradicionais. A combinação de agilidade com liberdade tornou a plataforma influente e contrastante com a tendência da comunicação social para arrastar os pés.
O tempo encarregou-se de revelar, desta feita no Twitter, quão insólita é a ideia de que a liberdade medra sem freios. Como a história demonstra, a liberdade consolidou-se com instituições de intermediação e formas de regulação. Por isso, a comunicação social tem critérios editoriais e obrigações deontológicas e as leis limitam o que pode ser dito e escrito. Hoje, o X é um espaço aberto aos trolls, à insídia e raramente se vislumbra qualquer debate produtivo. Mais, o algoritmo empurra-nos de forma imparável para conteúdos violentos, notícias falsas e revela um evidente enviesamento político, distante do espírito liberal fundador.
Foi este o contexto que levou o The Guardian a abandonar a plataforma. O que só acontece porque, com mais de um milhão de assinantes, provenientes de 180 países, o jornal britânico é um media global, com músculo financeiro para fazer esta escolha. Em parte, o The Guardian sai do X, porque pode gerir os custos de uma saída. Dificilmente um meio de comunicação social de base nacional poderia abdicar desta fonte de tráfego.
Mas quais seriam as consequências, se outras vozes acompanhassem o The Guardian no cancelamento do X? O resultado agregado seria mais um passo rumo ao acantonamento, ao fechamento face a outras visões do mundo e ao fim de um espaço comum de informação, mesmo que o debate seja hoje praticamente inexistente. O X pode ter-se transformado numa rede social bem menos recomendável, mas cancelar a plataforma corresponderia a uma entrega de território e a mais uma capitulação das vozes progressistas, que abdicariam de estarem presentes nas redes sociais com influência e impacto real.
(Transcrito do PÚBLICO)