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‘Fomentar cultura não é só edital e patrocínio’, diz nova diretora de Cultura

A palavra “desafio” faz parte do vocabulário de Maylla Pita. Convidada em janeiro deste ano para ocupar uma nova diretoria da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo (Secult), a gestora de fato têm alguns desafios pela frente. O principal deles talvez seja reposicionar o olhar sobre a cultura em uma cidade onde o turismo é fundado nas manifestações culturais de sua gente. 

A produtora cultural chegou à Secult para ocupar um espaço, a Diretoria de Cultura, idealizada para melhorar a sinergia entre turismo e cultura. Até então, havia duas diretorias na pasta. Uma de turismo, outra de gestão de centro histórico. A cultura ficava como algo transversal.

A “folclorização” das “singularidades de Salvador”, como Pita coloca, é um dos riscos que a Diretoria de Cultura pode ajudar a contornar. Ela diz isso enquanto fala do afroturismo, que objetiva destacar e promover a cultura negra e a diversidade no turismo.

“O caminho é promover e criar caminhos de acesso a caminhões de visibilidade. Mas que esse caminhos do turismo, no caso de comunidades tradicionais, não coloquem em risco a tradição, não exponham a tradição, não ultrapasse os limites do respeito a essa tradição”. 

Pita recebeu o CORREIO pouco antes de uma das reuniões do dia, na sede que a Secult compartilha com a Empresa de Turismo de Salvador (Saltur), no Comércio. A diretora de Cultura da Secult acredita em um fomento à cultura que ultrapasse os editais, mas que chegue às pontas das produção, “às mestras e mestres do saber”. 

Natural de Feira de Santana, mas com família soteropolitana, ela é graduada em Produção Cultural e mestre pelo Programa Multidisciplinar de Pós Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia. Pita chegou num momento “prioritário da secretaria”.  “Uma coisa que o secretário [Pedro Tourinho] coloca é a necessidade de mais pessoas pretas com a caneta na mão”.

O afroturismo, inclusive, deve ser um dos focos de atuação de secretaria, o que inclui olhar para os blocos afro e de samba para além da agenda carnavalesca. Em fevereiro deste ano, a sambista Mariene de Castro criticou o espaço do samba no Carnaval de Salvador. “O que ela traz é legítimo, a gente precisa pensar o lugar do samba”. 

Já o lugar do circuito central do Carnaval está claro – na última edição do evento, a Secult capitaneou o projeto Cole no Centro. “A ação no centro histórico no Carnaval de 2023 que deu muito certo e deixou o secretário animado para a gente engrandecer ainda mais em 2024”.

Em uma hora de entrevista, Pita ainda falou sobre a necessidade de contemplar os jovens, de a Secult pautar diretrizes sobre a cultura e os discursos proibicionistas que cercam o pagodão e os paredões. Leia entrevista na íntegra. 

CORREIO: Você foi chamada para ocupar um espaço que é para refletir o diálogo entre turismo e cultura. Quais ruídos que você identifica nessa relação ou falta de relação?

Maylla Pita: A gente vem de um histórico de apagamento das necessidades, das peculiaridades do campo de cultura, em virtude dessa junção. Historicamente, o que vemos nas estruturas das prefeituras de todo o Brasil é a cultura junto com outras pastas. Aí a gente chega num momento político nacional, lá por volta de 2008, que provoca os gestores, a sociedade civil, os agentes culturais, a lutarem pela institucionalização da cultura.

Esse movimento foi muito importante porque começamos a pautar a estruturação de políticas públicas de cultura no país. A gente viu, a partir da política de institucionalização da cultura, por meio da implantação dos sistemas de cultura, a proposta de criação de um órgão gestor exclusivo de cultura. 

Como a cultura estava junta a tantas outras pastas, os municípios não davam conta de pensar ações políticas estruturantes. Na verdade, nem falo que são ruídos, são perdas mesmo, quando a gente tem ministérios, inclusive, que juntam pastas, mas não pensa a reunião. 

“Estar junto é muito bom. O que é ruim é quando uma pasta se sobrepõe à outra. Aí está a perda. Aí eu preciso falar um pouco da estrutura da secretaria. Estamos num momento muito bacana da Secult. Porque, antes, quando você olhava para o desenho da Secult, havia duas diretorias estruturantes: a diretoria de turismo e a diretoria de gestão de centro histórico”.

Quando Pedro Tourinho chega, com muita sensibilidade, ele entende que se somos uma secretaria juntas, nós precisamos ter dois setores estruturantes para pensar turismo e cultura. 

Até então pensar cultura no município se resumia ao centro histórico?

Muito do que vem se estruturando e entregando para o município, através da prefeitura, vem sendo feito muitíssimo bem pela Fundação Gregório de Matos (FGM), que vem implementando diferentes elementos dos sistemas de cultura. Ela acabou absorvendo algumas responsabilidades que estariam aqui [na Secult]. 

“O fomento às artes de fato acontece pela FGM, mas a institucionalização da cultura precisa sair daqui. Precisamos  pautar a organização da pasta, pensar cultura de formar estruturante, para que os órgãos vinculados, outros equipamentos de cultura do município, trabalhem de acordo com diretrizes que são construídas a partir da  secretaria”. 

Estamos juntos, aqui, do turismo. Mas o que é que eu falo? O motor do turismo é a cultura. As pessoas que vem para a cidade Salvador porque querem viver a singularidade de Salvador. E o que a nossa singularidade? É a singularidade de ir ao Curuzu, no Carnaval, ver o Ilê sair, por exemplo. 

Você tocou nesse ponto da singularidade. Como fazer para que singularidade não sejam fenômenos de folclorização da cultura?

A  gestão cultural tem um papel essencial. Aí preciso trazer a importância da transversalidade, que é dialogar para, primeiro, fortalecer a base. Na dinâmica do afroturismo, especificamente, não dá para o turismo trabalhar de formar isolada. A cultura está junto. Por quê?

Quando o turista chega em Salvador e acessa as comunidades culturais, ele acessa os agentes culturais, as manifestações, os sujeitos e sujeitas que estão nessa rede. Trabalhamos na diretoria de cultura para fortalecer e estruturar a base, com qualificação, acesso aos meios de produção e difusão do trabalho, aos meios de comercialização do seu trabalho.

“Isso é importante falar: promover e criar caminhos de acesso a caminhões de visibilidade. Mas que esse caminhos do turismo, no caso de comunidades tradicionais, não coloquem em risco a tradição, não exponham a tradição, não ultrapasse os limites do respeito”. 

Eu sou da comunidade de axé, sou yaô de Oxum, e sei que existe aquilo que é da comunidade, que são os mistérios, a potência, os saberes e isso precisa ser salvaguardado e resguardado. Quando a gente se propõe a dialogar com o turismo, a partir dessa dimensão.

E a gente começa, por exemplo, a partir da própria secult e das ações do afroturismo, que é o carro chefe da secult hoje, desse lugar do cuidar. Do lugar ter as redes de cultura instrumentalizadas para estabelecer limites.

Hoje, como o turismo vende essas comunidades? 

O próprio afroturismo, como os negócios se colocam, já é uma resposta da percepção das redes que compõem esse ecossistema. Acho que existia uma inquietação de como isso pode ser feito de forma pouco cuidadosa e atenta às peculiaridades dessas comunidades culturais.

Tem uma expressão que eu gosto muito: “Não é fazer por, com fazer com”. Nada melhor do que nós mesmas fazermos, nós mesmas falarmos. O afroturismo propõe isso: quem vive faz e aí faz dessa formar atenta e cuidadosa as peculiaridade, às  singularidades, aos mistérios, o que precisa ficar resguardado, como cuidado de não transformar em show business.

O afroturismo é o turismo de experiência,  de respeito aquilo que a comunidade vive e constrói. É um lugar de escuta também, sobretudo. 

Se você precisasse analisar Salvador hoje, enxergaria mais no lugar do respeito ou no lugar do showbussines?

De que turista estamos falando? Estamos vivenciando um momento, por exemplo, de retomada da nossa própria história, em que tentamos reestabelecer uma conexão ancestral com ela. Vemos pessoas de África, por exemplo, retomando sua história cá, e gente daqui tentando retomar sua história em países de África.

Leia mais: Baianos viajam ao continente africano em busca de suas origens

Que turismo é esse que a gente quer fortalecer em Salvador? Isso é o que propõe o afroturismo, o salvador capital afro, por exemplo: trazer esse turista, que se conecta com essa cidade, em que 80% da população é negra, e se reconecta com a sua história. 

Você fala que uma das preocupações relacionadas aos produtores culturais são os desafios sociais. O modelo de edital, com suas burocracias, ainda é a forma de financiar projetos culturais no Brasil. Quais saídas você enxerga para que as pessoas acessem o dinheiro para produzir cultura? 

Não tenho respostas prontas, mas, assim, a gente precisa no fomento de formar ampla, não somente fomento como financiamento. Fomentar não é somente financiar através dos editais.

Podemos estimular a pesquisa, por exemplo, disponibilizando bolsas para trabalhos que estão fora da universidade mas tem papéis estruturantes nas comunidades. Podemos trabalhar na dimensão de premiações mais simplificadas, para conseguirmos acessar comunidades que não acessam os instrumentos essenciais. 

Maylla Pita: “O desafio é pensar caminhos de fomento democráticos” (Foto: Paula Fróes/CORREIO)

Nas burocracias, a gente se depara com muitas dificuldades, mas elas nos garantem a utilização do recurso público. O que nós, como gestoras e gestores, precisamos ter consciência é de como contornar esses caminhos, às vezes são tão difíceis, para chegar até as pontas, aos mestres e mestras de saber. 

“Os editais não dão conta, os patrocínios não resolvem, o desafio é pensar, realmente, caminhos de fomento que sejam democráticos e acessíveis para a diversidade de produtores de cultura”.

O diretor teatral Gil Vicente Tavares escreveu, resumidamente que faltavam políticas culturais no município. Falta política cultural municipal em Salvador planejada pela secretaria? 

[silêncio] Deixa eu pensar como te respondo o que eu vejo, porque o que é que eu vejo: a própria configuração anterior da secretaria dificultava, colocava algumas barreiras nesse caminho. Muito do que foi construído foi efetivamente tocado pela FGM.

Não posso afirmar que não há política cultural em Salvador, porque há. Existe sistema, conselho atuante, plano municipal de cultura aprovado em fevereiro do ano passado. São mais de 70 reuniões anuais realizadas.

“Passos importantes foram dados nesse sentido para estruturação da política cultural, mas, de fato, a própria configuração da secretaria, estrutura organizacional, dificultava essa entrega, entende?”

A cultura acabava sendo transversal, mas, talvez, não estrategicamente prioritária. Talvez isso nos traga muitas respostas. O fato da Diretoria de Cultura ter surgido é um sintoma. Primeiro, assim, a gente sente a necessidade de se apropriar disso. 

A gente tinha sim um cenário desafiador para que essas entregas fossem feitas de formar efetiva, mas a gente tem tentando superar esses formatos.

Pelo que estamos, o foco estava muito no centro histórico. Há lugares, territórios, que você percebe que precisam ser contemplados por novas políticas?

É uma armadilha isso de mencionar territórios, porque a cidade de salvador é enorme, existem vários Salvador dentro de uma Salvador. E cada território tem sua peculiaridade. 

Mas consigo visualizar, sim, desafios territoriais de acessar essas outras salvador a partir dessas entregas. E aí, a gente não acessa só criando equipamentos nesses territórios. Alguns já têm, os espaços de boca de brasa estão aí, e a FGM executa, mas a gente dialoga e pauta isso também. Mas não é só isso. 

“É a gente pensar, por exemplo, a composição de programação, projetos diversos da secretaria, dos próprios equipamentos culturais. Estamos tentando repensar e ressignificar a programação dos equipamentos geridos pela Secult, acessando os produtores de cultura desses territórios: .

Precisamos colocar essas produções no centro, não como centro geograficamente falando, mas como centro de lugar de produção, como centro de difusão das produções.

E você especificamente já vem de um trabalho com os jovens. Nesse papel de gestora pública, qual é a provocação para fortalecer os jovens na produção cultural em Salvador?

Você tocou no ponto fraco meu, que é a juventude e o potencial da juventude de impactar alguns cenários. 

É super importante, quando a gente fala de fomento à cultura, olhar para os novos produtores, novos artistas, com formação de talentos. É importante inspirar, através do acesso aos meios de produção, aos espaços de difusão de cultura, assim a gente inspira a juventude e também para estimular a produção através dessa juventude.

” A gente amplia o cenário quando a gente possibilita a essa juventude caminhos de produção de cultura, quando a gente pensa e inclui a juventude na nossa programação. Acho que o carnaval foi um pouco desse ensaio”. 

O carnaval é feito para Saltur, mas a Secult entrou com toda a campanha “cole no centro”. Lá na Praça Castro Alves para o centro histórico. Na Praça, acontecia todo dia o after, que reunia juventudes, com olhar muito voltado para juventude negra. E eu não posso me isentar desse debate e esse olhar, por conta do meu lugar social.

Ao fim do carnaval, foi muito destacado do centro. Já há planejamentos específicos para o carnaval de 2023?

A ação no centro histórico no Carnaval de 2023 foi muito encabeçada pelo secretário Pedro Tourinho. Foi um desejo dele que o prefeito abraçou, que deu muito certo, e deixou o secretário animado para a gente engrandecer ainda mais o carnaval no centro histórico em 2024. 

Baiana System no Carnaval de 2023 (Foto: Arisson Marinho/Arquivo CORREIO)

Acho que a experiência nos trouxe, também, pistas para pensar a composição de programação, em como ela pode ser mais democrática, envolver diferentes produtores e artistas do cenário cultura da cidade.

“Essa experiência, que foi uma pílula, que foi pequena mas muito significativa, nos trouxe muitas pistas para que a gente torne maior e fortaleça o carnaval do centro histórico da cidade”.

Falando em Carnaval, é impossível não mencionar Mariene de Castro, que afirmou que ela e o samba não tinham espaço no carnaval. Depois, o secretário veio a público dizer que ela não tinha se inscrito no edital. Vocês fizeram uma reunião sobre isso. A polêmica que se tornou esse caso deixou algum ensinamento?

Foi uma conversa bem cordial. Acho que a gente sempre aprende com acertos e erros. Pensando no caso do Carnaval, é importante dizer que não é uma frente de trabalho exclusiva da Secult, quem executa é a Saltur. A Secult entrou especificamente com a ação “Cole no centro de 2023” [e o patrocínio a 105 blocos afro].

“Mas o que Mariene [de Castro] traz é legítimo mesmo, a gente precisa pensar o lugar do samba na cidade de Salvador. Foi muito sobre o que a gente conversou na secretaria”. 

 O samba não é patrimônio imaterial a toa. Como nós, enquanto órgãos públicos de cultura, estamos posicionando o samba na agenda de políticas? Esse é o aprendizado e que passo podemos dar, no sentido de homenagear mesmo, de validar esse lugar, de fortalecer essa rede.

Da esq. para a dir.: Maylla Pitta, Mariene de Castro e Pedro Tourinho (Foto: Redes sociais)

Penso que a conversa, muito mais que a polêmica que surgiu em torno do que Mariene trouxe, nos traz aprendizados e pistas de como podemos caminhar pensando no fortalecimento do samba. Porque não é só sobre o carnaval.

Quando você fala não é só “sobre o carnaval”. Quais manifestações populares precisam ser mais fortalecidas?

O trabalho com samba junino, que vem sendo tocado pela FGM, é essencial. Para além disso, e o secretário Pedro Tourinho fala muito sobre, precisamos lançar um olhar com prioridade para os blocos afro. 

Aí vou ampliar, os blocos de samba, os blocos de afro, não são só blocos, são instituições culturais que funcionam o ano inteiro nos territórios periféricos como instituições sociais.

Leia mais: “[Depois do Carnaval], nós, dos blocos afro, ficamos resolvendo B.O. que deveria ser resolvido pelo Estado”

Então, como a gente dialoga com essas instituições para além do carnaval e do trio elétrico? Como podemos pensar e colaborar para a sustentabilidade dessas organizações. E isso é amplo e complexo, não é só sobre patrocínio e edital, é sobre a estruturação de caminhos e ferramentas.

“Isso demanda pessoal, espaço físico, qualificação técnica, possibilidade de escoamento, uma série de coisas necessárias para que essas entidades, essas organizações sociais que são os blocos afro, tenham força e vitalidade ao longo do ano”. 

O desejo é que a gente dê um passo largo nesse sentido e fortaleça salvador capital afro, que é muito esse lugar que reúne essas diferentes cadeias produtivas e culturais,  que conferem a singularidade do afroturismo em Salvador. O bloco afro é um desses grupos. 

Vocês têm dimensão quantitativa dessas manifestações de blocos afro?

Não temos esse mapeamento. E talvez, tá aí, um desafio, um ponta pé inicial. Onde estão, quem são e como estão? Mas temos consciência de que são muitos. Patrocinamos, no carnaval, 105 blocos. E esses não são todos.

Não é só o carnaval, sim, mas o carnaval é essencial e vários não conseguiram desfilar, por uma série de motivos. Não é um problema simples de resolver, está aí há muito tempo e exige escuta, participação social, troca, para que  a gente comece a pensar nesses caminhos.

Você reflete e pesquisa a marginalização do pagode aqui em Salvador. Depois do carnaval, houve uma série de discussões sobre a linguagem do pagodão. Essa reflexão precisa ser feita?

O que costumo problematizar é o seguinte: [pagodão] não é so sobre o sexo, nem sobre sexualização dos corpos. Porque isso ja estava aí a partir de diferentes produtos culturais. O incômodo que foi gerado, a partir de Igor Kannário e a super pipoca, por exemplo. Diziam que as facções criminosas estavam na avenida… Mas não é só sobre violência. 

“É sobre um lugar de fala e uma formar de expressar que incomoda grupos. É sobre um corpo-território que incomoda e ocupa um lugar que tradicionalmente não ocupa dessa forma”.

Penso que temos que aprofundar a discussão sobre o lugar social do pagode. O debate surge de forma muito simplificada e perigosa e muito fundada no racismo e no medo, que fundou, historicamente, uma série de políticas e proibições de manifestações que hoje são reconhecidas como patrimônio imaterial.

Temos sim que problematizar como os corpos femininos aparecem nos produtos culturais, nos games, não somente através da música. Mas temos que aprofundar, se não a gente estereotipa, recorre às mesmas práticas de um Salvador escravocrata que perseguia capoeira, candomblé, que justificaram editais que proibiam as rodas de samba de acontecer.

A gente tinha um edital que proibia, toque de recolher, a gente cai nessa armadilha de reproduzir esse mesmo discurso que gerou esses mecanismos de controle a manifestações culturais, identitárias. Tô dizendo que o pagode é essencial? 

Não, mas, está ai, amo inclusive. Então, temos que problematizar, colocar na mesa, como o meu corpo de mulher negra aparece nesses discursos, sim. Mas tenho que pensar também que o pagode é esse lugar onde a mulher negra bem sucedida, livre, que paga suas contas, chega final de semana, bota seu shortinho, seu salto, e vai para o pagode. Acabou.

“Saímos de um momento em que piriguete era quase um xingamento e hoje a gente entende numa diversidade de grupos sociais que piriguete é modo de vida”. 

E a essa narrativa quem trouxe? O pagode. Agora existem os limites dessa relação e aí não é sobre o pagode, mas sobre como o machismo estrutura as relações sociais, que aparecem na música, nas diferentes linguagens. O próprio samba, por exemplo, como a violência aparecia no sambas. A MPB.

O pagode é música de massa e tem uma capacidade de mobilização de juventude absurda. Dentro da sala de aula, eu usava o pagode para conversar com os jovens educandos. E eu conseguia me comunicar. Talvez se eu levasse o MPB não comunicasse. Então temos que nos apropriar desse potencial e o que construimos a partir daí. 

Sobre os paredões, que sofreram proibições mas continuaram acontecendo, é preciso tratá-los como manifestações culturais? 

Os paredões trazem muitas contradições, muitas dores, não dá para romantizar o olhar. Mas eles estão aí e a gente já entendeu que proibir não resolve.É a gente aprofundar a reflexão. Não estou comparando com a capoeira, tá? Mas veja, hoje ela é reconhecida como patrimônio imaterial, antes era proibida.

Não vou romantizar, é uma manifestação cultural, que assim como o funk proibidão, trazem uma narrativa cheia de nuances, cheia de problemas sociais que ficam evidentes a partir daquela linguagem e incomodam, assustam. Não estou dizendo que me assusta, mas assusta, porque vai contra uma narrativa de civilidade que foi construída. 

O Rio de Janeiro reconheceu, em um momento, o funk como manifestação cultural e o colocou dentro do guarda-chuva de políticas públicas. Foi um grande passo e acho que coloca muito nesse lugar.

A gente tem que prezar pela segurança, os paredões estão nesses territórios periféricos. O paredão do imbuí é diferente do da baixinha de São Gonçalo. O paredão da ilha, do final de ano, é diferente do que ocorre todo domingo. São outras histórias e outras narrativas. É por aí, quais são os desafios e como lidamos.

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