A surucucu é a maior cobra venenosa das Américas. O animal é capaz dar um bote de dois metros. Na Bahia, está o primeiro criatório particular da espécie do Brasil.
Era um dia comum de trabalho para o agricultor Rosevaldo de Jesus quando ele se deparou com uma visita inesperada na roça. “A cobra bateu no meu pé. Eu pulei de banda e ela pulou e me pegou em dois lugares. Foi escurecendo as vistas e aí não vi mais nada. Era pico-de-jaca”, diz.
Pico de jaca, surucucu e surucutinga são alguns dos nomes da lachesis muta, a maior cobra venenosa das Américas, que pode chegar a 4,5 metros de comprimento.
No livro ‘A MARCHA PARA O OESTE’, Orlando e Cláudio Villas-Boas dizem que a surucucu é a única cobra venenosa brasileira que avança. Muitas vezes, a má fama faz da espécie uma vítima.
A surucucu é nativa da Floresta Amazônica e da Mata Atlântica. Responsável por 3% dos acidentes com cobras venenosas no Brasil, a pico de jaca é uma espécie vulnerável. Esse e um estágio antes de ser considerada sob ameaça de extinção.
A região de Ilhéus, no sul da Bahia, é uma área onde a exploração do cacau, cultura que precisa de sombreamento, acabou por preservar parte da Mata Atlântica.
O médico mineiro Rodrigo de Souza tem sítio em Serra Grande, município vizinho a Ilhéus. Quando vai para o sítio, ele fica em lugar ao lado do lago e sem paredes. Ele prefere dormir em uma barraca.
“Eu acredito nesse tipo de sistema porque a interação com a floresta é muito grande. Com animais peçonhentos em geral, dentro da barraca fica bastante protegido. Fora isso, é risco”, explica Souza.
O médico conta que se interessou por animais peçonhentos ainda menino. Ele estudou e aprendeu sozinho. Souza foi para a região atuar como médico e acabou trabalhando também com as cobras. “Um policia militar bateu na minha casa de madrugada e pediu que eu removesse uma cobra. Ele achou que eu iria ‘amarelar’. Mas, eu fiz uma remoção e virou referência”, diz.
Os Boletins de Ocorrência mostram que o médico, com o conhecimento que tem, ajudou a resgatar várias cobras. Ele soltou uma na natureza e outras foram alojadas atrás de muros no Núcleo Serra Grande.
O Ibama foi informado sobre a existência das surucucus em 2003, quando o médico entrou com o pedido de autorização para a criação. Ainda não houve uma resposta definitiva. “Ela tem autorização prévia de instalação. Agora, foi feita a vistoria. A próxima etapa é a autorização de manejo, que é a final. Isso vai nos permitir reproduzir e comercializar o veneno de maneira que torne sustentável o criadouro, que cumpra sua utilidade”, diz o zootecnista Fábio Hosken.
O Ibama em Salvador confirma que a criação está em fase final de autorização e diz que a demora é porque trata-se de um caso pouco comum. “A grande questão era a origem desse plantel. Muitos foram entregues pela Polícia Militar oriundos da Polícia Civil, por ocorrência da população. Ao longo do tempo, esses animais se reproduziram em cativeiro. Então, havia uma dificuldade no cumprimento da legislação para demonstrar que esses animais têm uma origem legal“, diz Célio Pinto, superintendente do Ibama/BA.
O zootecnista Fábio Hosken é o responsável técnico e explica algumas normas de segurança para que nenhuma cobra escape. “A área onde existem os recintos está isolada. Existe uma faixa de segurança. Após ela, um muro com baldrame de 50 cm pra baixo. Ainda que ganhasse a área externa do recinto, ela encontra essa barreira instransponível. Portanto, a biossegurança dentro desse criadouro é 100%”, diz.
Os recintos onde ficam as serpentes são áreas cercadas ao redor da Mata Atlântica, habitat natural da surucucu.
Em 2007, Souza colocou uma fêmea e um macho de surucucu dentro de um dos viveiros instalados na propriedade para ver se haveria um cruzamento. Deu certo. Hoje, estão no lugar algumas pedras pintadas de branco para marcar o local onde foram encontrados os ovos. O médico não sabia a reprodução de surucucu era proibida.
“Quando você tiver a autorização de manejo, que é o licenciamento final, não há nenhuma objeção pra reprodução. Mas, até que o trâmite seja completado, não é possível, não é permitido que se reproduza. A gente ficou sabendo disso em 2011. A partir daí, temos tomado cuidado”, diz o médico.
Os filhotes estão com um ano e três meses e medem cerca de 60 centímetros. Eles são fruto, segundo o pessoal do núcleo, de um cruzamento acidental.
As cobras que precisam ficar em observação ou passarão por algum tipo de manejo são levadas para uma sala onde ficam alojadas dentro de barracas. Não é permitida a aproximação por que a cobra pode sentir a mudança de temperatura e achar que é alguma ameaça ou um alimento. Ela pode dar o bote e chegar a furar o material da barraca.
Cláudio dos Santos, que cuida das serpentes, separa as peles que encontrou nos recintos. “Uma adulta é de três em três meses e precisa estar trocando de pele. A gente faz o acompanhamento e vai reciclando essa pele”, explica.
Ao lado da sala de observação fica o biotério onde são criados os ratos que vão servir de alimento para as cobras. Os ratos são abatidos e congelados. Se fossem oferecidos vivos, sofreriam mais. Eles vão para o microondas antes de virar ração por que têm que estar quentes para cobra identificar como alimento vivo. E ela dá o bote.
Manejos mais complexos, quando a cobra deve ser manipulada, são feitos diretamente pelo médico. Para a proteção, ele usa calça reforçada e casaco de couro grosso. Depois, leva os animais apenas apoiando parte do corpo. Uma delas pesa cerca de 15 quilos e mede 2,4 metros de comprimento.
“A gente não pode tocar nos primeiros 40 centímetros. O uso do laço mata o animal. Ela vai girar no próprio eixo e quebrar a própria coluna. Ela pode dar botes de 1,5 a dois metros de altura. Ela avisa antes. Vai vibrar a cauda dizendo que ela está numa situação de estresse inicial. O barulho dela vibrando contra as folhas da floresta é tão forte quanto o chocalho da cascavel”, alerta o médico.
O médico avalia a saúde das cobras e coloca um chip de identificação, exigido pelo Ibama. Depois, fotografa a cabeça do animal ao lado da marcação do número do chip. O nome surucucu pico-de-jaca vem da textura do couro dela, que lembra a casca da jaca.
A estrutura do criatório foi montada com doações de empresários da região beneficiados pelo trabalho de resgate das cobras. Mas, o custo mensal vem do bolso do médico.
A única atividade até agora foi a doação de dois gramas de veneno de surucucu para a Funed – Fundação Ezequiel Dias, uma das responsáveis pela produção de soro antiofídico no Brasil. No prédio, que fica em Belo Horizonte, há cobras como cascavel, urutu e jararaca. Mas, só tem a mandíbula da surucucu. A última cobra morreu há cinco anos.
O soro é produzido em uma fazenda em Betim. O veneno da cobra é injetado nos cavalos. O organismo vai reagir e parte do sangue, plasma, contendo os anticorpos, é retirada e usada na produção do soro.
O diretor industrial da Funed, Luiz Marinho, diz que não faltam serpentes para extração de veneno, mas fala da importância de criatórios como o da Bahia. “É importante que a gente tenha parceria com pesquisadores que detenham a tecnologia disso. Acho que a gente tem que preservar um intercâmbio entre pesquisador e instituições científicas e tecnológicas”, diz.
O coordenador do Cevap – Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos, em Botucatu, São Paulo, o veterinário Rui Seabra Ferreira Júnior, falou de pesquisas que já estão em andamento com o veneno de surucucu. “Por ser um veneno que tem um grande efeito imunossupressor, ou seja, deprime o sistema imunológico do paciente, pesquisas que tratam da rejeição de transplantes, como a rejeição de órgãos. Você deprime o estado imunológico do paciente. Então, seria interessante para isso”, diz.
Enquanto espera pela autorização do Ibama, Rodrigo de Souza acalenta o sonho de aumentar o plantel. Hoje, o núcleo abriga 34 cobras. Mas, ele quer chegar a 200.
Ainda hoje, depois de tantos anos, o médico diz que tem medo da surucucu e, principalmente, respeita o animal. É esse respeito que faz com que ele tenha cuidados rigorosos no manejo.
Por | G1.globo.com