De vez em quando, a alegria vem. O tio repetia assim, em voz baixa, enquanto as crianças brincavam com pedrinhas de fogo na porta do bar. Logo cedo, o largo painel de madeira lustrada se abria, integrando o interior do restaurante rústico, com mesas e cadeiras assentadas no piso frio de cimento, à paisagem do pequeno balneário.
Uma carranca de meio metro, lembrança de um amigo de Juazeiro, espantava as assombrações dos hippies da aldeia com olhos enormes e dentes arreganhados. E o cheiro intenso de peixe parecia incrustado nas paredes verdes, pintadas numa tinta tão aguada que quase deixava à mostra os vestígios da pintura anterior.
Um barco desenhado ali outro acolá mandava lembranças à noção de perspectiva. E havia uns arremedos de pescadores, em tons pastéis, copiados dos quadros de Caribé, silhuetas finas, torsos nus, recortados contra um azul crispado. Eu esperava perto do tio, caderno aberto, fisgar com meu anzol as frases que ele soltava de vez em quando.
Eu escrevia nas férias, usando as folhas limpas que sobravam do material escolar, justificando a fama de menina esquisita, estudiosa, meio doida. O mar ali ficava tão próximo que os cabelos cheiravam a maresia o tempo todo. Mas era proibido se afastar do bar, chegar até a praia sem a companhia de um adulto.
Por isso mesmo, as crianças gostavam de fazer tudo ao contrário, combinavam de se afastar e, antes de entrar em casa, sacudir os pés de toda areia. Cúmplices, uns davam cobertura aos outros, num jogo de enganar que levariam para a vida de adultos. E o mundo do veraneio se resumia a essas fugas espetaculares.
Era só esperar um dos nossos vigias cochilar, enquanto fingíamos jogar as pedras de fogo para o alto, falsamente distraídos. E então ir desaparecendo da roda bem devagar, até que sobrasse apenas um ou dois. Na beira, só não valia molhar demais as roupas para não dar bandeira. Mas como era gostoso todo o resto.
Aquele paraíso escondido, a praia toda nossa, um jeito ingênuo de enganar os adultos, de se iludir sobre o controle das horas, tempo de sobra, tempo de sobra… O tio suspirando na porta, sem suspeitar que alguém ali levava sério. De vez em quando, a alegria vem, meu tio. A alegria vem e nem se nota.
Kátia Borges é escritora e jornalista