Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação/Arquivo
O presidente Lula 23 de março de 2024 | 07:03
Laura Petit da Silva perdeu as contas de quantas vezes viajou a Brasília para pressionar políticos por informações sobre seus irmãos desaparecidos na ditadura militar e apoio do Estado em busca de justiça.
Lembra-se de que em algumas ocasiões, desde o primeiro mandato de Lula (PT), em 2003, o petista chegou a marcar de recebê-la com outros parentes das vítimas, mas na hora agá alegava outro compromisso, e o encontro era desmarcado.
Ainda assim, aos 77 anos, Laura tinha expectativa de que desta vez a pauta recebesse maior atenção. “Reacendeu nossa esperança porque achamos que, depois de quatro anos de desgoverno Bolsonaro, pudéssemos recuperar nossas bandeiras de luta. Nós, que sempre o apoiamos, nos sentimos traídas. É uma decepção muito grande, um desencanto.”
Ela se refere à demora do governo em recriar a Comissão de Mortos e Desaparecidos, às recentes declarações de Lula de que a ditadura “faz parte da história” –condenadas por um manifesto de 150 entidades– e à determinação do presidente para que órgãos do governo não lembrem os 60 anos do golpe, em 31 de março –o que forçou o Ministério dos Direitos Humanos a cancelar um ato já programado.
Dois irmãos (Jaime e Lúcio) e uma irmã (Maria Lúcia) de Laura foram mortos pela repressão na região do Araguaia. Militantes do PC do B, integraram a guerrilha rural dizimada pelos militares nos anos 1970.
Conforme depoimentos de testemunhas e relatórios das Forças Armadas, Jaime e Lúcio foram assassinados após presos –o primeiro teve a cabeça decepada.
Seus restos mortais nunca foram encontrados. Os de Maria Lúcia, sim, após uma busca da própria família. Resgatados em 1991, só seriam sepultados em 1996.
Laura chora ao lembrar o trajeto de carro até o cemitério ao lado da mãe, hoje falecida. “Íamos com grande tristeza, mas com certo conforto porque estávamos enfim dando a ela uma sepultura com dignidade, o que tantas famílias ainda não conseguiram.”
Suzana Keniger Lisboa engrossa o coro de familiares desapontados com Lula. “Como presidente da República, ele deveria saber que você não pode passar por cima da história. Ele quer fazer de conta que não existiu? Fazer de conta que não foi preso? Lá no palácio, tinha a ficha do Dops dele, ele conseguiu resgatar. Quantos não conseguiram ter uma foto do seu familiar desaparecido?”, questiona.
Viúva de Luiz Eurico Tejera Lisboa, militante da ALN (Aliança Libertadora Nacional) assassinado em 1972 –mais um caso em que a ditadura forjou um suicídio– e cujo corpo foi o primeiro de um desaparecido a ser encontrado (em 1979), Suzana assinou a ata de fundação do PT e trabalhou por anos no partido, inclusive com Lula.
“Mas não é isso [o desdém de quem já foi tão próximo] que me deixa indignada. O que me revolta é ele ter recebido o pipoqueiro da esquina e não ter recebido os familiares”, diz Suzana.
“O que mais me impressiona é o total desconhecimento dele. Onde já se viu dizer que, ah, porque os militares que estão aí eram crianças [na época do golpe]. Nós estamos falando de história, e ele, como presidente, tem responsabilidade política sobre fatos da história do país. Ele é anistiado. Ele não sabe o que é tortura? Acho muito triste a ignorância dele sobre isso.”
Suzana, Laura e incontáveis familiares de mortos e desaparecidos têm martelado: continuam sem resposta ao pedido para um encontro com o mesmo Lula que, em viagem à Argentina em janeiro do ano passado, se reuniu com as Mães e Avós da Praça de Maio, às quais declarou: “obrigado por pessoas como vocês existirem”.
Sobre a versão de que Lula age assim para não entrar em confronto com os militares, Suzana afirma: “Não queremos matar nem torturar militar, como eles fizeram com nossos familiares. Não é confronto, é justiça. O Brasil é o único país em que tu querer saber o que aconteceu com o teu familiar é considerado revanchismo”.
Suzana Lisboa integrou por dez anos, de 1995 a 2005, a Comissão de Mortos e Desaparecidos. Deixou o colegiado queixando-se de que Lula não comprou a briga pela abertura dos arquivos da ditadura. Mesmo sem ilusões sobre o petista, esperava que agora fosse diferente.
“Porque o Lula foi preso. Eu achava que ele tinha refletido e se dado conta: ‘Tenho que enfrentar essa direita ou eles vão me engolir’.”
De fato, a atual postura de Lula confirma e reforça sua tendência de conciliação com os militares observada nos dois primeiros mandatos. Um símbolo desse comportamento foi trabalhar nos bastidores para que o Supremo rejeitasse uma ação da OAB que buscava punição, a despeito da Lei de Anistia, a crimes como tortura, assassinatos e ocultação de cadáver.
Outro foi a demissão, em 2004, do seu primeiro ministro da Defesa, o diplomata José Viegas, que entrara em confronto com o então comandante do Exército, general Francisco Albuquerque.
Em resposta a uma reportagem sobre o assassinato de Vladimir Herzog, o Exército divulgou, sem consultar Viegas antes, uma nota que relativizava a tortura na ditadura. Lula ficou ao lado do general Albuquerque, e Viegas pediu demissão.
O líder petista sempre incorporou o discurso dos militares de que a Lei de Anistia impedia a punição a crimes da ditadura –apesar de cortes internacionais decidirem que graves violações de direitos humanos não devem ser contempladas pela lei.
Por outro lado, no segundo governo Lula, na gestão do ministro Paulo Vannuchi, foi proposta, não sem atritos com a caserna, a criação da Comissão Nacional da Verdade, para aprofundar investigações sobre os crimes de Estado na ditadura –aprovada no Congresso Nacional e instalada somente no mandato de Dilma Rousseff (PT).
As fissuras decorrentes dos ataques golpistas de 8 de janeiro e a participação de militares naquela e noutras tramas golpistas, como fica cada vez mais claro, seriam a causa da cautela excessiva (ou covardia, como muitos preferem definir) de Lula. Auxiliares do presidente lembram que oficiais-generais de quatro estrelas têm ido à Polícia Federal depor, algo inédito no país.
Ministério da Defesa e Comando do Exército negam que os militares pediram algo nesse sentido a Lula ou que exista um acerto entre as partes para baixar a fervura nos 60 anos do golpe –tampouco haverá Ordem do Dia alusiva à data por parte do ministro José Múcio ou dos comandantes das Forças Armadas, como já não houve no ano passado.
No Quartel-General do Exército, as falas e os atos de Lula surpreenderam positivamente, pela sintonia com a posição histórica da corporação, e foram atribuídos ao tino político do presidente num momento de dificuldades com o Congresso e recuo na popularidade.
No palácio e na caserna, espocam versões para os gestos de Lula. Uma delas é a de que os militantes de direitos humanos são uma base tão fiel e orgânica do petista que, ainda que se incomodem, não deixarão de votar nele.
Não é bem assim, diz Suzana Lisboa. “Depois disso, eu acho que só [voto em Lula] contra o Bolsonaro, e mesmo assim fica difícil”, afirmou. “Nós ficamos sozinhos, a esquerda nos abandonou. Fui a um ato de memória contra a ditadura na Argentina, foi emocionante ver que a esquerda está com eles. Conosco nunca esteve, nem o PT nem ninguém. Pessoas individualmente nos apoiaram nesses anos. Mas nunca o PT como um todo.”
A proibição imposta por Lula aos órgãos do governo nos 60 anos do golpe é tida como excessivamente condescendente mesmo por quem compreende a cautela do presidente. É o caso de Carlos Fico, professor titular de história da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e autor de “Como Eles Agiam” e outros livros referenciais sobre a ditadura.
“Foi uma eleição difícil, ele ganhou por margem estreita, há toda uma bancada conservadora na Câmara. Seria muito difícil ter uma atitude de enfrentamento como talvez devesse ocorrer num mundo ideal. Mas pedir que não haja cerimônias relacionadas ao aniversário do golpe é um erro mesmo, intelectualmente indefensável”, diz Fico.
O historiador –que finaliza um livro sobre intervencionismo militar na história nacional, “A Utopia Autoritária Brasileira”– aponta para uma questão geracional.
“Os presidentes desde o fim da ditadura sempre tiveram esse excesso de reverência ou mesmo medo em relação aos militares. Quem viveu o auge da repressão já como adulto parece ter desenvolvido essa cautela excessiva. Espero que no futuro as novas lideranças políticas da esquerda e democratas em geral desenvolvam uma atitude menos reverencial.”
Maria Celina D’Araújo, também decana entre os estudiosos do tema, professora aposentada da PUC-RJ e do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da FGV, concorda com Fico, agregando outros elementos à análise.
“Lula reflete o senso comum da classe política e da média dos brasileiros, de que os militares são uma instituição que sabem cuidar de si e que a gente não deve criticar nem cobrar e que o passado passou, não deve ficar escarafunchando.”
“A sociedade brasileira é militarista, tem um fascínio, um respeito pelos militares acima da média dos nossos vizinhos”, diz Maria Celina, coorganizadora de obras como “Geisel” e “Visões do Golpe”, que reúnem depoimentos de figuras-chave da ditadura.
Para ela, desde a Proclamação da República, “os militares se autoconceberam como uma casta, e as castas são intocáveis, entendem que não podem ser cobradas nem criticadas. Acham que estão sempre certos, que são melhores que os civis, que são moralmente mais corretos, mais patriotas, são mais tudo”.
Embora Lula tenha introjetado o discurso militar, acrescenta, ele foi eleito com uma pauta mais crítica do que em 2002 e em 2006.
“O Bolsonaro realmente abusou de repudiar dos seres humanos, dos direitos humanos. Então, quem apoiou o Lula, em grande parte, pensou nisso: queremos um presidente que vai respeitar as pessoas, respeitar os direitos.”
Fabio Victor/Folhapress