Uma força-tarefa realizada nesta segunda-feira (23) resgatou 163 operadores que estavam em condição análoga à escravidão no canteiro de obras onde é construída a fábrida da montadora Build Your Dreams (BYD) em Camaçari, região metropolitana de Salvador (RMS). Partes dos alojamentos e da construção foram interditados.
Durante a ação, houve o embargo das atividades de escavações profundas e a interdição da cozinha de um dos alojamentos. Uma serra circular de bancada também foi interditada por não possuir as medidas de segurança adequadas.
Todos os trabalhadores resgatados são chineses. A ação foi comunicada à empresa e ao Jinjiang Group, uma das empreiteiras contratadas para realizar a obra.
Conforme o Ministério Público do Trabalho (MPT) na Bahia, parte dos resgatados continua em um alojamento e o outro grupo foi encaminhado para um hotel, mas não poderão trabalhar e terão os contratos de trabalho rescindidos.
Em coletiva de imprensa na tarde de hoje, representantes do MPT, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Defensoria Pública da União (DPU), Polícia Rodoviária Federal (PRF), Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal (PF) relataram as condições encontradas no canteiro de obras.
Como relataram as autoridades, os resgatados estão com a saúde mental e física completamente comprometidas. A interdição da obra será válida até que a Jinjiang se adeque às normas para um ambiente seguro de trabalho.
OS ALOJAMENTOS
Eram quatro alojamentos em condições precárias em Camaçari, sendo um banheiro destinado a 31 pessoas, forçando os trabalhadores a acordar às 4h para formar fila e conseguir se preparar para sair ao trabalho às 5h30. As acomodações não possuíam as condições mínimas de higiene.
A situação encontrada no primeiro alojamento, foi de trabalhadores dormindo em camas sem colchões, sem armários para guardar seus pertences pessoais, que ficavam misturados com materiais de alimentação.
A fiscalização constatou que o segundo alojamento, destinado principalmente aos soldadores, apresentava condições similarmente precárias. Embora houvesse um material sobre as camas, estes eram na verdade apenas revestimentos de 3cm de espessura, insuficientes para proporcionar condições mínimas de uso, sendo que algumas camas sequer contavam com esse revestimento.
Todos os alojamentos compartilhavam problemas graves de infraestrutura e higiene. Os banheiros, além de insuficientes, não eram separados por sexo, não possuíam assentos sanitários adequados e apresentavam condições precárias de higiene. A ausência de local apropriado para lavagem de roupas levava os trabalhadores a utilizar os próprios banheiros para esta finalidade.
Um quinto alojamento, destinado a trabalhadores de funções administrativas, também foi fiscalizado, mas, apesar de identificadas algumas irregularidades, não foi caso de resgate de trabalhadores.
ALIMENTAÇÃO
A situação em algumas das áreas de alimentação era igualmente precária. As cozinhas funcionavam em condições alarmantes, sem armários adequados para armazenamento de alimentos. Em um caso particularmente grave, foram encontrados materiais de construção civil próximos aos alimentos, e alimentos armazenados próximos a banheiros em condições insalubres.
Apenas um dos alojamentos possuía um refeitório improvisado, com bancos e mesas de madeira em área semicoberta, ainda assim insuficiente para todos os trabalhadores, forçando a maioria a realizar suas refeições nas próprias camas.
Em um dos quartos, ocupado por uma cozinheira, foram encontradas panelas com alimentos preparados deixadas abertas no chão, expostas a sujeira e sem refrigeração, para serem servidas no dia seguinte. Os trabalhadores consumiam água diretamente da torneira, sem tratamento, inclusive levando-a em garrafas para o local de trabalho.
As condições no canteiro de obras também revelaram graves irregularidades. O refeitório no local de trabalho utilizava coolers para servir as refeições, sem garantir condições mínimas de higiene. Os banheiros químicos, apenas oito para aproximadamente 600 trabalhadores, encontravam-se em estado deplorável, sem papel higiênico, água ou manutenção adequada, além de não respeitarem as distâncias mínimas estabelecidas por norma.
ACIDENTE DE TRABALHO
Os trabalhadores estavam expostos a intensa radiação solar, apresentando sinais visíveis de danos à pele. Foram registrados diversos acidentes de trabalho, incluindo um caso em que o trabalhador, devido à privação de sono causada pelas condições inadequadas de alojamento e longas jornadas, sofreu um acidente. Outro caso grave envolveu um trabalhador que sofreu lesão ocular em abril e, apesar de solicitar atendimento oftalmológico, nunca recebeu o devido acompanhamento médico.
A obra apresentava múltiplas irregularidades relacionadas ao ambiente de trabalho, levando ao embargo das atividades de escavações profundas e à interdição parcial de estabelecimento, especificamente da cozinha de um dos alojamentos. Uma serra circular de bancada também foi interditada por não possuir qualquer medida de segurança.
TRABALHO FORÇADO
Além das condições degradantes, a situação caracteriza trabalho forçado, devido a diversos indicadores constatados durante as inspeções: os trabalhadores eram obrigados a pagar caução, tinham 60% de seus salários retidos (recebendo apenas 40% em moeda chinesa), enfrentavam ônus excessivo para rescisão contratual e tinham seus passaportes retidos pela empresa. A rescisão antecipada do contrato implicava na perda da caução e dos valores retidos, além da obrigação de custear a passagem de volta e restituir o valor da passagem de ida.
Para se ter uma ideia, caso um trabalhador tentasse rescindir o contrato de trabalho após seis meses, deixaria o país sem receber efetivamente nada pelo seu trabalho, já que o desconto da caução, da passagem de vinda ao Brasil e o pagamento da passagem de retorno, na prática, configuraria confisco total dos valores recebidos pelos trabalhadores ao longo da relação de trabalho.
A jornada de trabalho, a seu turno, já estava fixada no contrato em dez horas diárias, o que era agravado pela ausência de concessão regular das folgas previstas no instrumento. Foi identificado um trabalhador vítima de acidente de trabalho que estava há 25 dias sem folga. Esse trabalhador relatou cansaço e sonolência no momento do acidente, demonstrando que as longas jornadas e as condições de alojamento, que impedem o descanso, foram fatores cruciais para o acidente.
As fiscalizações foram iniciadas em meados de novembro. Uma audiência virtual conjunta do MPT e do MTE foi marcada para dia 26 de dezembro, à tarde, para que a BYD e a Jinjang apresentem as providências necessárias à garantia das condições mínimas de alojamento e também para que sejam negociadas as condições para a regularização geral do que já foi detectado. A inspeção, no entanto, ainda prosseguirá com análise de documentos solicitados e não está descartada a necessidade de novas inspeções in loco. (Atualizado às 18h41)