Foto: José Cruz/Agência Brasil
O ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero 25 de novembro de 2023 | 11:59
“Não tenho parceiros socialistas”, “a relação com o Mercosul é um estorvo” e “o bloco não vai para nenhum lado”. As ameaças do presidente eleito da Argentina, Javier Milei, de esfriar as relações com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a quem já chamou de comunista, colocam em xeque o futuro do Mercosul.
O bloco, que também reúne como sócios ativos Uruguai e Paraguai, e que tem um acordo pendente com a União Europeia, pode passar por um momento delicado a partir da posse do ultraliberal argentino.
Para o ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero, o bloco já vinha demonstrando sinais de crise há pelo menos duas décadas e só ainda não desapareceu por “inércia”.
“Nos primeiros anos, ele teve uma força fantástica, mas nunca conseguiu diversificar a área de serviços e de tecnologia, essa crise é profunda e talvez não exista uma solução”, diz ele, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo.
Para o ex-diplomata, apesar das incertezas causadas pela vitória de Milei no país vizinho e sua provável relação difícil com o Brasil, o anarcocapitalista deve enfrentar dificuldades políticas caso tente executar seus planos de campanha, e sua aliança com o ex-presidente Mauricio Macri deve limitar a sua plataforma de governo.
Independentemente das críticas de Milei, o Mercosul precisa ser reformado?
O Mercosul está em uma crise profunda há pelo menos 20 anos e que se agravou especialmente após o colapso argentino de 2001 [a crise do ‘corralito’]. Todos os governos que se sucedem no Brasil e lá anunciam a intenção de revitalizar o bloco e fazer com que ele entre em novas áreas, mas o Mercosul só ainda não desapareceu por ter a força de permanência da inércia.
Eu era ministro da Fazenda, em 1994, quando se optou claramente por essa fórmula de união aduaneira, é algo muito antigo e que sobrevive por ter criado interesses que são poderosos.
Nos primeiros anos, ele teve uma força fantástica, mas nunca conseguiu diversificar a área de serviços e de tecnologia, essa crise é profunda e talvez não exista uma solução.
Tanto os conceitos do Mercosul quanto dos outros acordos de integração da América do Sul e da América Latina datam do começo dos anos 1960, época em que a expansão do tamanho do mercado local por meio da integração seria um instrumento para a industrialização.
Foi assim também no início do Mercado Comum Europeu. Hoje, na imensa maioria dos países latinos, a indústria perdeu o dinamismo.
Deixamos a industrialização de lado?
Fui encarregado do comércio na Embaixada do Brasil na Argentina nos anos 1960. Naquela época estávamos começando a integrar os produtos manufaturados e havia uma série de acordos setoriais, as empresas tinham fábricas no Brasil, na Argentina, no Chile, no México e acordavam entre si.
Quando cheguei a Buenos Aires, o Brasil vendida madeira de pinho, café, banana. Foi aí que começamos a comercializar máquinas.
Só que com o tempo, a América Latina perdeu esse horizonte da industrialização, mas os acordos ficaram presos nessa ideia, somos basicamente exportadores de commodities e é obvio que Brasil e Argentina não vão se integrar vendendo soja e milho um para o outro.
O que podemos esperar para o Mercosul nos próximos anos, com presidentes tão diferentes como Lula e Milei comandando os principais sócios?
Não vejo nem a possibilidade de uma revitalização nem a de um colapso.
Só neste ano, a Argentina já exportou para o Brasil mais de 120 mil veículos, geralmente SUVs, tudo regido pelo comércio administrado, com cotas. A venda de automóveis e autopeças tem um acordo específico renovado periodicamente e que fixa cotas, é o oposto do livre-comércio.
Se Milei for de fato alguém de pensamento neoliberal e tiver a intenção verdadeira de liberar as trocas, terá de abrir mão disso.
Só não dependemos mais de importação de carros da China por causa das tarifas, não por competitividade. O que sobrou da indústria argentina é nessas áreas, a Ford saiu do Brasil, mas está presente lá.
Se ele decidir fazer uma política de livre-comércio, vai colocar em questão o acordo da indústria automobilística. A indústria argentina é ainda mais protecionista, a Argentina é a Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] ao cubo. Ele terá condições para enfrentar isso?
Se tiver a intenção, ele vai ter condições de fazer isso?
Não podemos esquecer que ele tem uma posição minoritária no Congresso. Foi eleito em grande parte pela ânsia de mudança da população, que não aguentava mais a situação econômica e estava disposta a pagar qualquer preço, mas isso não foi capaz de fazer com que ele ganhasse no primeiro turno.
Milei ganhou com o apoio do [ex-presidente] Mauricio Macri e da [candidata do macrismo] Patricia Bullrich.
Ele tem dito que eliminaria todos os subsídios. Macri dizia o mesmo, mas não conseguiu fazê-lo quando foi presidente.
As contas dos argentinos, como a de gás, têm um subsídio enorme. Não estou nem entrando nas propostas de dolarização ou de acabar com o Banco Central, vejo dificuldades para ele mesmo nessas questões concretas, que mexem com os interesses da população.
O acordo entre Mercosul e União Europeia corre risco de emperrar?
Milei declarou várias vezes que era contra, mas o acordo só existe hoje por causa de Macri, ele esperava que isso seria um grande trunfo para a sua reeleição, o que não ocorreu. Será que Macri vai querer abrir mão?
O futuro do acordo depende mais da sua complexidade, as dificuldades são gigantescas e ainda há muitos obstáculos na Europa e, inclusive, aquelas colocadas pelo governo Lula.
A perspectiva para a relação Brasil e Argentina é de administração do prejuízo, a relação irá de mal a pior, não há boas perspectivas em matéria de política, ainda que se consiga administrá-la diplomaticamente.
Até agora, Lula se comportou com mais comedimento do que no passado, como na eleição de Evo Morales [ex-presidente da Bolívia] quando ele chegou a subir no palanque. Mas ninguém deve se iludir, tanto de um lado quanto do outro, os sinais são negativos.
Vimos no Brasil uma piora na relação com a China no último governo. Podemos esperar o mesmo com a Argentina?
Bolsonaro multiplicou as declarações negativas e agressivas sobre a China, foi uma espécie de cópia de [do ex-presidente dos EUA Donald] Trump quando falava sobre a origem do vírus da Covid-19. Mas, a partir de um certo momento, o próprio Bolsonaro recuou, na época da implementação do 5G.
O dilema de Milei tanto sobre o Brasil quanto sobre a China é que o país dele depende desses parceiros, mesmo que o novo presidente não goste.
A Argentina recebeu créditos da China e teve momentos em que a sua possibilidade de continuar comercializando dependeu do socorro chinês.
O sr. foi o ministro da Fazenda que lançou o real. A Argentina, com inflação em 12 meses acima de 140%, precisa de um ‘Plano Real’?
Na época em que fui ministro, [o presidente Carlos] Menem e o [ministro da Economia Domingo] Cavallo comandavam a Argentina e parecia que tudo estava dando certo.
Cavallo tinha conseguido eliminar a inflação de uma hora para outra, com a conversibilidade, em que um peso valia um dólar. Era uma ideia um pouco parecida com a de Milei, e na época muitos analistas achavam que o Plano Real era gradual demais e que demoraria para produzir efeitos, enquanto o plano argentino produzia efeitos imediatos.
Cavallo me disse pessoalmente que o Brasil deveria seguir o caminho deles. Vamos completar 30 anos com a mesma moeda, que não é perfeita, mas lá na Argentina o plano acabou em lágrimas.
Os argentinos têm uma certa tendência ao radicalismo enquanto aqui tendemos ao gradualismo. As duas abordagens têm defeitos, mas eles têm o que chamam de ‘tremendismo’, querem fazer todas as coisas de uma hora para outra, isso em geral não dá certo.
O diagnóstico da equipe do real era que a inflação brasileira era heterodoxa e precisava desindexar a economia, algo que ainda não foi plenamente resolvido.
A economia da Argentina tem muito defeitos, mas tenho a impressão de que o nível de indexação lá é menor. Eles precisariam de uma equipe com uma ideia original, que adotasse as medidas de acordo com as necessidades locais.
Douglas Gavras/Folhapress