Foto: Vinicius Loures/Arquivo/Câmara dos Deputados
A ministra Nísia Trindade 04 de abril de 2024 | 07:58
O Ministério da Saúde pegou o dinheiro reservado a emendas parlamentares de bancada para mandar recursos a Estados e municípios à revelia das indicações formais do Congresso Nacional, não atendendo prefeituras indicadas pelas bancadas e repassando as verbas para outras cidades por critérios próprios.
Conforme o Estadão revelou, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) distribuiu R$ 8 bilhões da Saúde em troca de apoio político em 2023, atropelando critérios técnicos e repassando dinheiro de cirurgias e exames para cidades que não tinham capacidade de realizar esses procedimentos.
Parte desses recursos, um total de R$ 241 milhões, foi enviada às custas de uma reserva no Orçamento destinada às emendas de bancada não impositivas e não atendeu aos pedidos formalizados pelos parlamentares. O governo não tinha a obrigação de obedecer às indicações, mas mexeu com um dinheiro que geralmente segue a mesma lógica de negociação.
Ao fazer a movimentação, o ministério passou por cima das propostas apoiadas formalmente pelos parlamentares e beneficiou cidades que não têm capacidade para realizar procedimentos de alta e média complexidade com o dinheiro recebido. A transferência ainda pode ter atendido alguma indicação política, mas o órgão não deu transparência para essas negociações.
A distribuição da verba à revelia do Congresso é mais um ingrediente na disputa entre o Executivo e o Legislativo pelo controle do orçamento do Ministério da Saúde. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), tinha domínio sobre as liberações do orçamento secreto, esquema revelado pelo Estadão, no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
No governo Lula, o controle é exercido pelo ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, padrinho da ministra da Saúde, Nísia Trindade, no cargo. Após sucessivas cobranças e queixas de Lira levadas diretamente a Lula, o dinheiro foi rateado. Parlamentares, porém, suspeitam que o governo atropelou as indicações do Congresso ao liberar vários recursos por conta própria.
A bancada de São Paulo indicou R$ 52,6 milhões da Saúde para a gestão estadual, mas não foi atendida. O dinheiro seria destinado ao Fundo Estadual de Saúde e poderia beneficiar hospitais de alta e média complexidade. A verba foi parar em municípios paulistas escolhidos pelo próprio ministério. Mairiporã recebeu R$ 8,1 milhões. O valor extrapolou o limite estabelecido para os repasses regulares da pasta para o município (R$ 7,9 milhões) e também o limite para a indicação de emendas na cidade (R$ 1,6 milhão). Embu das Artes (SP) levou R$ 10 milhões, abaixo do teto regular (R$ 23,7 milhões) mas acima do limite para emendas (R$ 9,9 milhões), e também não teve apoio formal da bancada.
O coordenador da bancada de São Paulo, deputado Antonio Carlos Rodrigues (PL-SP), afirmou que não tinha informação do que foi feito com as indicações das emendas não impositivas. “Das emendas impositivas, os compromissos foram cumpridos. Das não impositivas, é sempre um ponto de interrogação”, afirmou. Integrantes do grupo criticam o manejo das verbas pelo Ministério da Saúde. “Que critério é esse? Se atendeu algum parlamentar, tem que falar quem foi”, disse o deputado Fausto Pinato (PP-SP).
A bancada do Maranhão indicou R$ 8,5 milhões para o governo do Estado e R$ 3,5 milhões para a prefeitura de São Luís custear procedimentos de alta e média complexidade, mas também não foi atendida. O ministério pegou o dinheiro e liberou, em um único dia, R$ 1,9 milhão para São Bernardo (MA), cidade de 26.943 habitantes que só tinha estrutura para receber R$ 968,7 mil de repasses regulares do governo federal e R$ 940 mil de emendas parlamentares. Procurada, a prefeitura de São Bernardo disse que “todos os recursos destinados ao município são investidos dentro das normas vigentes e regulamentações para utilização dos mesmos”.
Em Goiás, o grupo de deputados e senadores tentou enviar R$ 9,8 milhões para Goiânia, mas o recurso foi distribuído pelo ministério para outras cidades menores, que não foram indicadas pela bancada, incluindo R$ 631 mil Abadia de Goiás, R$ 299 mil para Buriti de Goiás e R$ 493 mil para Chapadão do Céu. Nesses casos, o repasse ultrapassou o teto regular, e não o teto de emendas, mas deixou a capital do Estado sem o recurso solicitado. “Que sacanagem. Nem sabia disso. A coordenadora da bancada não passou nada para nós”, disse o deputado Zacharias Calil (União-GO). A coordenadora da bancada é a deputada Flávia Morais (PDT-GO).
No dia 12 de dezembro, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, assinou uma portaria para estabelecer que as emendas de bancada não impositivas seguiriam as mesmas regras da Portaria 544, publicada em maio, e que foi usada pelo governo Lula para atender aliados. Com essa vinculação, a pasta classificou o dinheiro como emergencial e driblou os limites de recursos impostos a cada município, sem explicar que emergência ocorreu.
No dia 28 de dezembro, quando o Congresso já estava sem atividades, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, assinou uma portaria liberando um total de R$ 601,9 milhões para bancar a realização de exames e cirurgias em Estados e municípios. Desse montante, R$ 241 milhões saíram das emendas de bancada. O que era para ser um atendimento das indicações do Congresso virou recurso distribuído por conta própria do governo, criando distorções nos repasses.
Ministério da Saúde diz ter atendido propostas de Estados e municípios
O Ministério da Saúde afirmou ao Estadão que atendeu propostas de Estados e municípios e que, nesses recursos, não cabia às bancadas escolher as localidades beneficiadas. Além da portaria assinada pela ministra no dia 12 de dezembro, uma portaria interministerial do dia 3 de março do ano passado afastou a aplicação das indicações pelos autores das emendas não impositivas.
De acordo com a pasta, os repasses foram feitos para propostas apresentadas pelos gestores estaduais, municipais e distrital de Saúde, observando requerimentos técnicos de cada política pública e a disponibilidade de dinheiro no Orçamento. “Portanto, não há indicações de beneficiários nestas situações, a apresentação de propostas compete aos gestores estaduais e municipais”, diz o órgão.
Sobre a diferença entre os valores recebidos por municípios, e a falta de recurso para outros, o ministério afirmou que há dificuldade de estabelecer comparações entre as diversas realidades sanitárias e socioeconômicas dos municípios do País. Além disso, disse a pasta, “é necessário entender que os diversos componentes de financiamento da Média e Alta Complexidade devem ser considerados em conjunto, ou seja, observando o universo de portarias publicadas durante o exercício financeiro.”
O que são emendas de bancada?
Emendas de bancada são recursos indicados pelo conjunto de deputados e senadores de cada Estado no Orçamento da União. Todos os anos, os parlamentares da Bahia, por exemplo, indicam o envio de verbas federais para uma rodovia no Estado. O mesmo acontece com São Paulo, que destina repasses para um hospital mantido pelo governo estadual.
Quem paga o recurso é o governo federal. Parte das emendas, porém, não são impositivas, ou seja, o Executivo não é obrigado a atender os parlamentares, mas todos os anos entram no Orçamento e entram na mesma lógica de negociação. Foi nessa parcela de dinheiro que o ministério mexeu.
No total, as bancadas estaduais indicaram R$ 828 milhões em emendas não impositivas ao Ministério da Saúde em 2023, dos quais R$ 673 milhões foram efetivamente liberados – o restante foi cancelado. O ministério só definiu a liberação do dinheiro nos últimos 10 dias do ano, sendo que 74% do valor teve a destinação decidida nos dias 30 e 31 de dezembro.
Daniel Weterman e André Shalders/Estadão Conteúdo