“No Forró, Gonzaga. Carnaval, Navio Pirata”. Já diz a canção que – não humildemente, mas corretamente, diga-se de passagem – aponta o marco que se tornou o grupo BaianaSystem (BS) no Carnaval de Salvador, com o Navio Pirata sendo um dos trios mais aguardados da folia, principalmente, a partir de 2019.
Sem cordas – porque divisões como essa não cabem na filosofia do grupo – o trio menor do que os tradicionais movimenta as ruas de Salvador no Furdunço (domingo que antecede o Carnaval) e em mais um dia de festa oficial. Não mais que isso. O que já é mais do que suficiente para fazer seu nome na avenida, arrastar uma multidão e carimbar para sempre memórias afetivas em quem participou.
Para entender o que faz com que uma narrativa estética tão peculiar, uma comunicação discreta, um ritmo indefinido e um empurra-empurra que só os fortes aguentam gerem uma reação positiva de tamanha proporção, o Alô Alô Bahia conversou com fãs e com um dos integrantes da banda.
O que é BaianaSystem?
O grupo baiano surgiu em 2009, com a promessa de mostrar novas possibilidades sonoras. O nome já diz tudo: é a junção de “guitarra baiana” com “sound system”, sistemas de som criados e popularizados na Jamaica.
O estudante Tiago Paiva, de 26 anos, descreve BS como uma mistura. “Rock, hardcore, rap, samba-reggae, música eletrônica, reggae…são diversos estilos musicais que amo. E é um paralelo extremamente interessante com nossa existência, nossa cultura, dotada de sincretismos”, diz.
Para a analista técnica Luiza Rocha, de 25 anos, BS representa uma estética fiel da música baiana. “A mágica está no caráter alternativo, desde a sua concepção. Isso é a cara do Carnaval. E, claro, hoje em dia é impossível ouvir uma guitarra baiana e não lembrar de BaianaSystem”, diz a fã.
Baiana já se apresentou em importantes festivais, como Rock in Rio e Lollapalooza, e também possui carreira internacional, fazendo turnês pela Europa, Estados Unidos, Japão e China. Já são duas músicas usadas como trilha de abertura de novela da TV Globo: “Sulamericano”, em “Um Lugar ao Sol”, e uma versão de “Segundo Sol”, na novela de mesmo nome.
Os integrantes, sob o comando do vocalista, Russo Passapusso, já dividiram o palco com artistas de longa data, como Elza Soares, Pitty, Margareth Menezes, Luiz Caldas, Vanessa da Mata e Gilberto Gil.
O ritmo é quase impossível de ser definido. Com a imprensa, o grupo é discreto. No site e nas redes sociais, a narrativa estética é carregada de significados implícitos que chamam a atenção. Não há muitas fotos dos integrantes. “BaianaSystem é o público”, dizem eles. Nas letras das músicas e nas apresentações, porém, a narrativa é bastante direta e definida.
BaianaSystem narra a história da Salvador de verdade, fazendo questão de permear as letras das músicas com locais e características da cidade e do povo que nela vive. Mas tudo longe do romantismo cantado por Caymmi; BS coloca em cena desigualdades e conflitos. Na música “Lucro: Descomprimido”, o grupo critica a especulação imobiliária na capital baiana, por exemplo. Nas apresentações ao vivo, homenagens e críticas não passam despercebidas. E nada mais político do que o Carnaval de Salvador, com seus espaços de afetos, tensões e resistências.
No Carnaval de 2017, Russo gritou do alto do Navio Pirata: “Golpistas, fascistas, racistas! Não passarão!”. Em 2019, o cantor fez uma homenagem a Mestre Môa do Katendê e à Marielle Franco. O público não ouve calado, reforçando as mensagens em um uníssono potente.
“Não se trata de política partidária ou eleitoreira, mas de todos os comportamentos políticos que estão presentes em quase tudo. O posicionamento fica claro em cada artista de uma maneira diferente e nós temos a nossa. Nosso posicionamento tem a ver com nossa relação com o público e com o que se transmite nas letras. A política é parte disso tudo e não tem como ser diferente”, coloca Roberto Barreto, guitarrista da banda.
O que é a pipoca de BaianaSystem?
O analista de sistemas Caio Leal, de 29 anos, acompanha BS desde 2012. “Colocaram ‘Terapia’ para tocar e eu me apaixonei pelo som”, diz. Ele descreve, não por mera coincidência, a sensação de escutar as músicas de BaianaSystem como uma “terapia sonora”. Mas a cereja do bolo mesmo está nas apresentações ao vivo. “É a energia do show, o companheirismo nas rodinhas, o feeling de Russo ao guiar. Mas o mais importante: a sensação de alma lavada e renovada depois que o show acaba”, explica Caio.
Descrever a pipoca de BaianaSystem é missão quase impossível porque só quem vive é capaz de entender completamente, mas é possível tentar. Pode-se dizer que 2009 foi o ano emblemático do recuo das cordas no Carnaval soteropolitano. Baiana começou no Carnaval em 2010, mas ainda como grupo desconhecido pela maior parte do público.
Foi com projetos de ocupação do Pelourinho e com a criação do Furdunço, em 2014, que a história da pipoca de BS ganhou seu destaque, sendo apelidada de Carnaval do Futuro pela Prefeitura de Salvador. Não estavam errados.
Tiago Paiva esteve presente lá no começo, nas apresentações no Pelourinho e, de lá para cá, já acompanhou mais de 30 shows. Bate ponto nos trios sem cordas de BaianaSystem desde 2013. “A pipoca de BS é viva, nada padrão e totalmente orgânica. Nunca a pipoca de um ano é igual a de outro, mas sempre com um poder enorme de magnetizar quem está em volta”, diz.
O público não tem cara. Do vendedor ambulante que guarda seu espaço na avenida ao grande empresário. Do preto ao branco. Dos “de quebrada” aos playboys e patricinhas. Entre críticas e apoios, Baiana cresceu e se tornou de todos, se tornou do mundo.
Do alto do Navio Pirata, os tripulantes traduzem em um estilo próprio os sons das ruas de Salvador e se conectam com quem vai lá embaixo de uma forma que nenhum outro grupo faz. Está formada uma catarse coletiva, um efeito alucinógeno por si só, sem que nenhuma substância ilícita precise estar envolvida.
“O navio é mais um dos nossos símbolos. Temos aquele mar de gente que nos acompanha e, de alguma forma, Baiana surge na contramão do mecanismo do axé music vigente e da hegemonia dos blocos e camarotes. Não estávamos na grande mídia, nas TVs. E sempre destacamos a diáspora, valorizando a cultura afro presente naquele meio. Então era como um navio de pirataria”, explica Roberto Barreto.
O que é que Baiana tem?
A jornalista Marcela Villar, de 25 anos, é soteropolitana, mas está morando em São Paulo e vem para o Carnaval daqui só para acompanhar o trio de Baiana. Ela chega no dia 19 – segundo e último dia da pipoca de BS – e só vai deixar as malas em casa e correr para a avenida.
“Eu fui para um show de Baiana em São Paulo. Foi maravilhoso, mas não foi a mesma coisa de um show em Salvador. Porque não é só a banda, é a banda e o público. É essa a mágica de Baiana e do Carnaval: a mistura da banda com o público e com a proposta da pipoca. São as pessoas que sabem todas as letras, os fãs de verdade, que não param de pular nem por um segundo, que gostam do calor humano do aperto e que abrem roda e se jogam”, diz.
E com Marcela não tem perrengue na avenida que a faça perder o sorriso na pipoca de Baiana. “Na de 2017, eu simplesmente perdi o pé direito do meu tênis. Uma amiga minha tinha perdido um elástico de cabelo e a galera abriu uma roda para ela procurar até achar. Mas eu não conseguia parar de rir para explicar para as pessoas o que tinha acontecido. Deixei para lá e pulei a pipoca com um pé só de meia. No meio do caminho ainda achei um pé de sandália; era do esquerdo, mas botei no direito e continuei pulando e rindo”, conta.
O nome pipoca vem do folião que pula atrás do trio. Mas Baiana vai além. São tantas pessoas reunidas disputando espaço perto do Navio Pirata que há momentos em que os pés param de tocar o chão e é possível flutuar sendo movido apenas pela empolgação da multidão. E mesmo que haja espaço, os pés não ficam no chão durante muito tempo nem que se queira. BaianaSystem é de fazer pular sem parar por um segundo do início ao fim do circuito.
As tradicionais rodas de bate-cabeça são de assustar quem vê de cima ou não conhece Baiana. Não precisa comando, não precisa tanta organização. De repente, quando a música dá o tom, vários espaços vazios são formados e só assim para que se consiga ver um pedaço de chão na avenida. A música dá o tom novamente e em poucos segundos o chão some mais uma vez. Não é roda de briga. É roda de extravasar a felicidade coletivamente com respeito. E os sorrisos vão de orelha à orelha.
É aperto, é empurra-empurra. Mas os fãs garantem que “é só amor”, como diz uma das canções. E não se iluda porque, no geral, é mesmo. A solidariedade entre os pipoqueiros de Baiana é de impressionar. Abre-se espaço até para quem vai amarrar o tênis. Em um dos carnavais, uma criança se perdeu dos pais e, de repente, havia uma multidão de foliões gritando “Mateus está aqui! Ô mamãe, ô papai”.
Em 2020, a passagem no Furdunço ficou marcada pelo espaço dado a pessoas com dificuldade de locomoção. A foto em que o diretor de cinema Matheus Rocha, de 25 anos, aparece em sua cadeira de rodas suspensa pelos foliões viralizou nas redes sociais e nos sites de notícias. Memórias que quem viveu jamais irá descartar.
“Durante a pipoca, o que mais me toca é como a música rege os momentos de euforia, de pular, e de fazer as rodas, mas também os momentos de respiro, de calmaria, dos ijexás e isso me encanta demais. Ir de cadeira de rodas a diversos e variados shows, como eu já fui, é quase uma pesquisa antropológica. Na prática, nunca fui tão respeitado quanto sou atrás do Navio Pirata”, compartilha Matheus Rocha.
Para a pipoca de 2023, o guitarrista Roberto Barreto afirma que o Navio Pirata receberá convidados especiais, mas sem ainda revelar os nomes. “Sempre respeitamos a lei natural dos encontros. Dificilmente fazemos algo muito programado”, diz. “Mas a nossa expectativa é grande em cima de tudo o que o Carnaval representa, são três anos sem isso. Estamos ansiosos para colocar o Navio Pirata na avenida de novo e ter esse contato especial com o público”, finaliza.
Matheus não perde por esperar o próximo domingo: “A expectativa é que o ritual deste ano não seja só de levitar de alegria, mas que seja o reinício de tudo. Que seja, depois de anos pandêmicos e sombrios, a abertura de caminhos para diversas coisas boas que hão de vir para nossa cultura”.
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