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O medo de amar 

Na China, no dia 11 de novembro, comemora-se o Dia dos Solteiros. Reza a lenda que a data começou a ser comemorada ainda nos anos 90, como brincadeira de alguns universitários, mas em 2009 passou a ser levado a sério por um grupo de varejo e se tornou um grande dia de descontos. Hoje a comemoração dos solteiros é um marco no comércio chinês, com uma onda de vendas maior que a própria Black Friday, movimentando um volume financeiro de 139 bilhões de dólares por ano, segundo a revista Exame.

O fato de a solteirice ser um dia mais comercial do que o Dia dos Namorados diz muito sobre a China atual. Segundo informações do Ministério de Assuntos Civis do país, em 2018, o contingente de pessoas que se declarou solteira foi de 240 milhões. Estima-se que 90 milhões de chineses vivam solo, principalmente em apartamentos nos grandes centros urbanos. Em pesquisa da 21st Century Business Herald, somente 7,3% dos solteiros entrevistados planejam comprar uma casa que seja maior que a sua residência atual, a fim de um dia constituírem uma família.

No Japão, nos Países Nórdicos e nos centros urbanos europeus ou norte-americanos, há indícios de que isto seja uma tendência millenial. Essa “rapeize” de 30 a 40 anos sofreu uma conjuntura de crises financeiras e redução das possibilidades de ascensão social, que bem viveram a classe média e a classe alta dos anos 60 e 70, com uma economia mais voltada para o estado de bem-estar social e para a estabilidade do mercado de trabalho.

Sem saudosismo, apenas olhar sociológico, o miolo do século XX era um mundo mais “sólido”, nas palavras do famoso pensador Zygmunt Bauman, o que seria o contrário desta nossa “modernidade líquida”. Que vem a ser? Uma instabilidade das instituições, uma imprevisibilidade nos empregos e profissões, uma indefinição dos sentidos de verdade e autoridade. 

Antes que nos acusem de mudar de assunto, Bauman escreveu justamente o livro Amores Líquidos, para mostrar que o modo como estruturalmente nos relacionamos com a realidade material – trabalho, consumo, metrópole, economia, política – implica no nosso desejo ou não de dizer “sim” para um sacerdote que nos case.

O verso de Vinicius de Moraes, “que seja eterna enquanto dure”, ganha o sentido maroto de uma noite apenas, com toda a intensidade. Por que não?, indagaria Caetano Veloso, para consumar a alegria, alegria. E sim, Deus também viu que isto era bom, mas é sempre uma escolha e somente uma escolha pessoal a forma como se replicam as relações fluídas e instáveis de produção e de consumo nas relações amorosas? 

Espremendo em suco todas essas análises sociais: adquirimos em cada um de nós um medo de amar. Em certo sentido, foi até uma reação ao outro extremo do passado, que era o sufocamento das relações nos laços eternos, seja em uma profissão que não se gostava, numa carreira de 30 anos sem sair do mesmo quarteirão, ou em um matrimônio em que muitas desejaram que chegasse logo a doença em vez da saúde para bem se livrar. Vide o eu-lírico também de Vinicius de Moraes na canção Medo de Amar: “Agora vá sua vida como você quer / Porém, não se surpreenda se uma outra mulher / Nascer de mim, como do deserto uma flor / E compreender que o ciúme é o perfume do amor”. Não, meu caro, ninguém quer a solidez de uma relação estranha, atormentada por um homem ciumento…

O significado mais atual seria o cantado por Elis, em letra de Fernando Brant para música de Beto Guedes: O medo de amar é o medo de ser livre. É a inversão, porque nos acostumamos com a ideia de que liberdade é não estar vinculado a nada. Mas, por outro lado, quem não se vincula não necessariamente escolhe, pois não está implicado de fato para ter de escolher.

É como a lamúria de Fernando Pessoa no Poema em Linha Reta: “Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado para fora da possibilidade do soco.” Ou seja, suspende qualquer elo por temer se machucar na luta, que não é uma luta entre dois, pois no amor toda luta é de cada um consigo mesmo, na tentativa de se doar e de recepcionar um outro… Assim os versos de Fernando, agora o Brant, continuam: “O medo de amar é não arriscar, esperando que façam por nós o que é nosso dever: recusar o poder.”

O que é o poder? Em nosso próprio, é o infinito de possibilidades. Uma escolha é a vida de um caminho para a morte de tantos outros. Nós nos perguntamos: se nessas desistências houver uma grande oportunidade, seja uma daquelas pessoas que curtem meu story descontraído ou seja aquela vaga de LinkedIn em uma empresa que parece a grama verde do vizinho?

É o dilema de Alice no País das Maravilhas diante da Lagarta e do Gato, porque em um não sabe o que perguntar porque não quem é, já que ela cresce a todo momento, e acha que já não é a mesma de manhã, de tarde ou de noite, e em outro ela não consegue entender para qual caminho seguir porque não teria para onde ir. 

Seja na escolha da solteirice ou da figura amada para décadas e décadas, mas que seja uma escolha, o único dever é recusar a fantasia do infinito para o pacto da finitude. E aí temos mesmo de ser, ser aquele que somos, mesmo que às vezes parasita, vil, arrogante, ridículo, como é o humano demasiado humano do poema de Pessoa, para vermos em nós os limites e querermos ampliá-los através dos contornos de outro alguém… 

*Saulo Dourado é escritor de livros de ficção e professor de filosofia em colégios de Salvador
Opiniões e conceitos expressos nos artigos são de responsabilidade dos autores

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