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O sono da razão gera monstros

Na semana passada, fui entrevistado por um amigo jornalista para o lançamento do meu novo livro. Entre outros assuntos, ele me perguntou como faço para manter a fé no homem, já que diariamente somos bombardeados por notícias tenebrosas, sobretudo neste Brasil em frangalhos. Ele sabe e compartilha da minha vocação humanista e da minha crença na força da arte e do conhecimento como armas contra a estupidez e a brutalidade.

Respondi que vejo uma evolução, ainda que lenta e acompanhada por eventuais retrocessos, no curso da humanidade, mesmo que muitas vezes sejamos tomados pelo desencanto. Essa minha fé no ser humano sofreu um forte abalo na última quarta-feira, quando me deparei com as cenas de policiais rodoviários federais executando um homem inocente em Umbaúba, Sergipe. À vista de todos, durante o dia, sem qualquer escrúpulo.

Genivaldo de Jesus Santos, negro, 38 anos, com problemas mentais, foi morto no porta-malas de uma viatura, asfixiado por gás, enquanto os policiais o impediam de sair. É uma cena aterradora, mas a sua banalidade torna tudo ainda mais revoltante. Estamos falando de um cidadão assassinado numa câmara de gás por funcionários do Estado brasileiro. Impossível não traçar um paralelo com os campos de extermínio nazistas. Auschwitz é aqui.

Fico me perguntando o que falta para nos darmos conta de que uma linha crucial foi ultrapassada. Que um crime como esse não precisa apenas de punição rigorosa e exemplar, mas também de indignação coletiva. Por outro lado, quantos limites já não foram ultrapassados antes, sem que houvesse um grito de basta? Esse episódio está longe de ser um fato isolado. Ele faz parte de uma metodologia do terror, praticada por forças policiais com o incentivo tácito de um presidente que cultua um torturador e estimula chacinas contra civis.

Em um artigo exemplar, o jornalista Reinaldo Azevedo lembrou, no seu blog no UOL, da frase de Pedro Aleixo, então vice-presidente do país, quando Costa e Silva decidiu baixar o AI-5, no dia 13 de dezembro de 1968: “Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da esquina”. Reinaldo acertou na mosca. É o exemplo que vem de cima e desemboca nas ruas, nas operações policiais, na truculência como única forma de abordagem, no aniquilamento sistemático de seres humanos.

Até o momento em que escrevo, não se sabe o nome dos agentes criminosos. A Polícia Rodoviária Federal publicou uma nota indigna, que não reproduzo aqui para não reverberar manifestações de cinismo. Provavelmente esses agentes vão se beneficiar da impunidade reservada a praticamente todos os profissionais fardados que agem da mesma forma. Incluindo aqueles que matam crianças e adolescentes em morros do Rio de Janeiro ou de Salvador.

Em outra entrevista concedida na semana passada, esta para o próprio Correio (que você ler aqui), manifestei minha preocupação diante do que enxergo como uma arquitetura da destruição, expressão que não por acaso dá nome a um documentário sobre o nazismo. Vivemos hoje algo muito parecido com o que aconteceu nos anos 1930 na Europa, quando o ovo da serpente foi gerado sob os olhos do mundo. Deu no que deu.

Em sua autobiografia O Mundo de Ontem, que estou lendo, o escritor austríaco Stefan Zweig definiu assim o resultado do avanço fascista sobre o continente: “Contra a minha vontade eu me tornei testemunha da mais terrível derrota da razão e do mais selvagem triunfo da brutalidade dentro da crônica dos tempos; nunca – eu não registro isso de maneira alguma com orgulho, mas sim com vergonha – uma geração sofreu tamanho retrocesso moral, vindo de uma tal altura intelectual como a nossa.”

Com exceção do fato de que não partimos de grande altura intelectual, o testemunho de Zweig poderia ser aplicado quase inteiramente ao Brasil militarizado e instrumentalizado dos últimos quatro anos. Verissimo certa vez escreveu: “O sono da razão gera monstros, diz aquela frase numa gravura do Goya. O sono da razão parece ficar cada vez mais profundo, na noite atual”. A mim, resta apenas concordar com os mestres.

*

Na próxima quinta, dia 2 de junho, às 19h30, lanço o livro Pegadas no Solo do Tempo, seleção de crônicas publicadas aqui no CORREIO todas as segundas. Os que me acompanham aqui neste espaço estão todos convidados. O lançamento acontecerá no espaço cultural Oito Imagem.

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