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Personagens impressos na pele

Uma amiga fez recentemente uma tatuagem no braço com os nomes dos seus personagens literários preferidos. Estão lá, entre outros que não me recordo agora, o Godot de Beckett e o Karamázov de Dostoiévski (imagino que o Ivan, embora eu nutra enorme simpatia por Aliocha e sua bondade inata). Também comparecem o Sueco Levov de Pastoral Americana, petardo maior de Philip Roth, e a sofrida Caddy da obra-prima faulkneriana O Som e a Fúria.

No fino braço de minha amiga couberam ainda o Aureliano Buendía de Cem Anos de Solidão (provavelmente o primeiro do clã, aquele que o pai levou para conhecer o gelo) e o Pedro Páramo que reencontra seus mortos em Comala, no livro homônimo de Juan Rulfo. Acho que há Kafka também, mas não tenho certeza. Todas essas referências atestam o bom gosto e a erudição da moça que, desde que a conheci, há quase 30 anos, já enveredava com gosto pelas trilhas tortuosas do delírio silencioso.

Matuto aqui se não seria uma boa ideia imitar minha amiga e imprimir na pele alguns dos tipos imaginários que povoaram a minha longa aventura literária. Mas talvez precisasse dos dois braços para elencar os meus favoritos. Fazendo um rápido exercício, eu certamente a acompanharia no Buendía e no Karamázov (mas qual deles? Ivan ou Aliocha? Não sei ao certo. Certamente não seria o mais velho, Mitia, muito menos o patriarca ou o bastardo Smerdiakov). Poderia, quem sabe, optar por outro anti-herói do gênio russo, o atormentado Raskolnikov de Crime e Castigo. Voltando a Gabo, incluiria ainda Florentino Ariza, de O Amor nos Tempos do Cólera, e Estevão, o afogado mais bonito do mundo.

Sueco Levov certamente encontraria espaço em meu braço, mas meu coração pende entre ele e o decano Coleman Silk, de A Marca Humana. São duas figuras trágicas da obra de Roth, de quem cultuo como livro favorito o autobiográfico Patrimônio. De resto, trilharia outros caminhos. Dos tempos de adolescência, resgataria o Sal Paradise do On the Road, minha velha Bíblia aventureira, escrito por Jack Kerouac. Até hoje, vejo muito de mim naquele estradeiro impetuoso. Mas seria esse um critério? Reunir personagens com os quais me identifiquei ou ainda me identifico?

Provavelmente sim, ao menos em parte. Por isso, não deixaria de fora Santiago Zavalita, de Conversa na Catedral. Não esqueço do sentimento de orfandade ao abandonar a página derradeira do livro de Vargas Llosa. E de ver em Zavalita quase um irmão de alma. O sartreano Mathieu Delarue, de A Idade da Razão, é outro com quem me identifico e que certamente encontraria espaço no meu bíceps humilde de sedentário.

E quanto aos tipos de Hemingway, que represam oceanos de angústia por trás de suas frases lacônicas? Quais deles mereceriam macular o moreno da minha pele? Thomas Hudson (de As Ilhas da Corrente) certamente, Jake Barnes (de O Sol Também se Levanta) idem. A princípio, apenas os dois. E Fitzgerald? Poderia ser qualquer um daqueles tipos que se dissipam feito neblina nos seus romances e contos (Amory Blaine, Anthony Patch, Jay Gatsby, Dick Diver e tantos outros). Até porque, como disse o próprio, “Todos os meus personagens são Scott Fitzgerald”.

Quem mais? Diadorim com certeza. Mas sem Riobaldo? Impossível não incluir ambos, nascidos da mente prodigiosa de Guimarães Rosa para povoarem de fascínio as páginas de Grande Sertão: Veredas. Falando em Rosa, poderia inserir ainda o pai sem nome de A Terceira Margem do Rio. Falando em contos, como esquecer de Iona e seu cavalo confidente em Angústia, de Tchékhov?

Também não poderia faltar A Maga, de O Jogo da Amarelinha (Cortázar), que desponta eternamente na Pont des Arts à espera de Horacio. Nem o Ishmael de Moby Dick (Melville) ou o filho enfermiço da vida Hans Castorp, de A Montanha Mágica (Mann). E qual das centenas de personagens de Vida e Destino (Vassili Grossman), o maior dos romances que li na vida, maior até do que a própria vida, ocuparia espaço no braço cada vez mais tomado por palavras sem fim?

E que braços, por mais extensos e musculosos que sejam, seriam capazes de aprisionar a magnitude de Borges? Como tatuar não apenas personagens, mas também universos? Há tantos Borges por explorar, tantos Funes e tantos Hladiks, tantos tigres e tantos labirintos, tantos cegos e tantos suicidas. Borges é infinito. E meu braço é só um braço.

Já que não consigo ser impiedoso como minha amiga e me restringir apenas ao essencial, talvez seja melhor desistir da ideia da tatuagem. Ou fazer diferente, reunindo os meus autores preferidos, e não os personagens. Mas aí já seria tema para outra crônica.

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