InícioEditorialPor que autores baianos apostam pouco em ficção sobre 2 de Julho?

Por que autores baianos apostam pouco em ficção sobre 2 de Julho?

Dezenas de livros de não ficção, escritos com exaustivo rigor e minuciosa pesquisa, registram desde 1940 os fatos que culminaram no 2 de Julho. No entanto, raros são os romances contemporâneos produzidos na Bahia que apostam em enredos com pano de fundo histórico. Não apenas a Independência, diga-se, mas eventos de igual dimensão, embora repletos de personagens interessantes e peripécias que renderiam boas tramas, parecem não incendiar a imaginação dos ficcionistas baianos ou despertar o interesse dos editores locais. Exceções nesse cenário, alguns títulos publicados nos últimos dez anos vão na contramão dessa tendência, sinalizando uma possível, mas ainda tímida, reviravolta. Editado pela Caramurê em 2014, “2 de Julho: a carta de alforria”, de Cleise Furtado Mendes, carioca radicada na Bahia desde os anos 60, muito embora seja a transcrição de um texto teatral encenado em 2013, com direção de Paulo Dourado, é um bom exemplo de que há, sim, leitores interessados na ficção histórica. Cleise lembra que várias escolas de ensino médio adotaram o livro na época e que, no Colégio Salesiano, em 2019, alguns alunos fizeram uma montagem com base no texto. “Tive a satisfação de conversar com os jovens e de perceber o seu interesse pela história da Bahia”, conta a dramaturga, que ressalta sempre ter cultivado o interesse por figuras históricas, presentes em outras peças escritas por ela, como “Castro Alves”, que foi encenada por Deolindo Checcucci em 1996, e “Joana D’Arc”, dirigida por Elisa Mendes em 2010. A narrativa, que se passa entre Salvador, Santo Amaro, Cachoeira e Ilha de Itaparica, lança luz sobre uma luta travada nas dobras do movimento pela independência: a dos negros escravizados por liberdade. “Foi isso que os levou a participarem, como voluntários, nessa guerra”, diz a autora. Entre fontes diversas, Cleide credita ao livro do professor Luís Henrique Dias Tavares, “A independência do Brasil na Bahia” (EDUFBA, 2005), um lugar de destaque. “Ele me ajudou a ordenar cronologicamente essa tão complexa teia de fatos e pessoas envolvidas em acordos e demandas, levantes e conspirações”, explica. Universal-local Editor do livro de Cleise sobre o 2 de Julho, Fernando Oberlaender também publicou, em 2021, a coletânea de contos “Histórias e histórias da Bahia”, que reúne oito releituras livres de episódios da vida de personagens como Antônio Conselheiro, Luiz Gama e Juliano Moreira. Entre os convidados, autores baianos de diferentes gerações literárias, a exemplo de Carlos Ribeiro, Mirella Márcia Longo e Aleilton Fonseca (Coleção dos Novos), Suênio Campos de Lucena e Marcus Vinicius Rodrigues (Prêmio Braskem/Fundação Casa de Jorge Amado), Saulo Dourado, Clarissa Macedo e Wesley Correia (publicados a partir de 2010). Aleilton Fonseca, um dos contistas presente na coletânea da Caramurê, é também autor do romance histórico “O pêndulo de Euclides”, editado pela Bertrand em 2009, que tem como pano de fundo a Guerra de Canudos. A história é narrada do ponto de vista do povo sertanejo, contrariando a versão oficial. “Há alguma poesia, alguns contos e até romances. Mas há pouca atenção, quase nenhuma pesquisa. Falta sistematização dessa literatura, abordagem crítica. Esse desinteresse acaba desestimulando os escritores”, opina. Eventos relevantes, para Fonseca, não faltam, quando o assunto é escrever ficção com pano de fundo histórico. “A colonização a partir do Castelo Garcia D’Ávila é um tema fértil. A resistência dos povos originários é forte. As lutas dos povos escravizados é heroica. A independência é um fato histórico dos mais importantes e a resistência dos sertanejos de Canudos, um tema internacional”, elenca. “A Bahia deveria criar um prêmio para estimular a produção e publicação de nossa literatura histórica”, sugere. Já Clarissa Macedo, que escreve sobre a tragédia de Júlia Fetal, em “Histórias e histórias da Bahia”, põe no centro da questão, além do desconhecimento sobre a importância histórica da Bahia, a necessidade de uma reflexão profunda sobre a complexa relação universal-local, que afeta autoras e autores da terra de Jorge Amado e de todo o Nordeste brasileiro. Para esta escritora, também, poeta “se o sentido do local não for problematizado e se não houver o acirramento da demarcação de outras territorializações, inclusive literárias, o possível medo de falar da própria terra irá persistir”. Lições de mestres Editor da Caramurê, Oberlaender diz que aprendeu a gostar de história com dois grandes mestres baianos, os professores Cid Teixeira (1924-2021) e Luís Henrique Dias Tavares (1926-2020), com quem já trabalhou em projetos por demanda, alguns deles em coprodução com o Correio. O gosto foi tamanho que o editor entabularia, nos anos seguintes, uma parceria com o jovem historiador Daniel Rebouças que já gerou diversos livros. Após as primeiras edições, ele conta ter percebido a existência de uma lacuna no mercado de publicações do gênero, bem como de um público carente desse gênero de publicação. Escritor e professor de jornalismo, Carlos Ribeiro concorda apenas em parte com Cleise e Obelaender. Para ele, apesar de exceções como “Viva o povo Brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro, e “O touro do rebanho”, de Krishnamurti Góes dos Anjos, há de fato uma lacuna no que se refere a obras que enfoquem personagens e acontecimentos históricos específicos da Bahia. No entanto, ele acredita que não há ainda uma demanda de leitores. “Não consigo ver esse mercado, nem para romances históricos, nem para outros gêneros. Mas é possível, sim, construir esse mercado, com uma política pública efetiva no setor”, observa. O empenho pessoal e o investimento de tempo que envolvem o projeto de pesquisa para um romance histórico são considerados, por Ribeiro e por outros escritores baianos, como fatores que influenciam no fato de ser rara a produção contemporânea. A estes se juntariam, na opinião do atual vice-presidente da Academia de Letras da Bahia (ALB), Marcus Vinicius Rodrigues, a opção por escritas mais intimistas e sem uma paisagem definível. Autor de “Cada dia sobre a terra” e o “Mar que nos abraça”, entre outros títulos, ele é um dos poucos que tem os bairros de Salvador como cenários de seus contos e poemas. Baianidade sem folclore Na opinião de Rodrigues, para esse tipo de narrativa, a paisagem baiana pode ser mais um complicador a mais. “Salvador — a Bahia — é um personagem muito marcante. É difícil lidar com tanta força. É opressivo. Quem escapa do projeto intimista, foge para o interior e o mundo rural, que, aliás, tem ganhado protagonismo na literatura atual”, argumenta. Escrever um livro histórico, complementa, envolve ainda contar com apoio editorial ao projeto. E são os editores que, muitas vezes, sinalizam o rumo. “Foi Claudius Portugal quem me chamou a atenção para o fato de que minha geração não tratava de Salvador em suas narrativas, lembra. O autor começou a escrever sobre Salvador em “Cada dia sobre a terra”, livro em que cada conto é sobre um dia da semana e os orixás que o regem. “A cidade apareceu necessariamente, embora tenha sido uma Salvador pouco retratada, não presa à baianidade folclórica”, explica o escritor, que em “A eternidade da maçã” tem o período da ditadura militar, entre 64 e 78, como pano de fundo. “Cheguei à história a partir das músicas de Caetano. O objetivo era falar das subjetividades e não retratar o tempo. Fiz pesquisas pontuais e me guiei pela memória. Apesar do momento histórico retratado, é um livro intimista”, diz. No momento, ele escreve outra história ambientada em Salvador, que tem como pano de fundo um fato real, ocorrido nos anos 80, mas manteve a mesma disposição intimista. “Tenho lido jornais antigos, mas vou escrever uma ficção subjetiva. Personagens reais serão mencionados de longe”, adianta. Se Marcus Vinicius Rodrigues é um dos poucos ficcionista a considerar a Bahia e sua história na ficção, certamente não é o único. Ainda bem. Ao dele, podemos acrescentar os nomes dos escritores Saulo Dourado e Victor Mascarenhas, autores, respectivamente, de “O Borbulhar do gênio” (Caramurê) e “Sete dias em setembro” (P55). Coadjuvantes e heróis Publicado em 2023, “Sete dias em setembro” é um projeto desenvolvido ao longo da última década e retomado de forma definitiva com a proximidade dos 200 anos da independência do Brasil, comemorados no ano passado. Mascarenhas conta que, embora o livro já estivesse pronto em 2022 e pudesse obter até maior impacto, se lançado naquele ano, preferiu adiar, por conta do “circo de horrores” em torno da data, promovido pelo Governo Bolsonaro. Interessado compulsivamente por história e política, o escritor desarruma a narrativa da independência, colocando em evidência coadjuvantes heroicos. No caso, os desconhecidos Paulo Bregaro e Antônio Cordeiro, mensageiros que levaram as cartas do Rio de Janeiro até Dom Pedro I em São Paulo. “Os grandes protagonistas já tiveram sua vida contada e documentada inúmeras vezes, enquanto os coadjuvantes oferecem muito mais possibilidades para a ficção”, justifica. Em seu romance anterior, “O som do tempo passando”, coeditado por seu próprio selo editorial, o Cafeína, em parceria com a P55, Mascarenhas se voltou para o espírito rocker dos anos 80/90, seguindo uma linha que já se tornou característica de sua produção literária. “Apesar de se passar em 1822, Sete dias em setembro traça paralelos da polarização da época com a que vivemos hoje. Nesse sentido, acho que o livro acabou soando tão contemporâneo quanto os meus outros trabalhos”, esclarece. Também bastante contemporâneo é o olhar que Saulo Dourado dedica, em “O borbulhar do gênio”, a dois gigantes da história cultural e política da Bahia, o poeta Castro Alves e o rábula Ruy Barbosa. Aproximar os dois no espaço e no tempo, só mesmo com muita pesquisa lastreando a imaginação. “Eles conviveram dos 12 aos 22 anos de maneira praticamente ininterrupta, entre três cidades diferentes. E se tornaram, a seu próprio modo bem distinto, verdadeiros ícones. Então decidi recriar esse cenário, essa possível troca de olhares e os impactos das relações entre os dois. Só a literatura pode ir tão longe: arriscar o pensamento e o diálogo que não constam nos autos, nos documentos, nas cartas…”, observa Saulo, acrescentando que, no total, o livro consumiu três anos de pesquisa com escrita e reescrita. “Quis que os fatos fossem os fatos, e somente as conexões narrativas fossem a imaginação”, explica. As dificuldades da ficção histórica, para este autor, residem na recriação de linguagem e de ambiência. “O historiador, muitas vezes, está interessado naquilo que determinada personalidade fez e que impacta na coletividade. O escritor, para transformar a personalidade em personagem, precisa dar a ela substância. Então não são apenas as ações que interessam, mas toda uma correspondência com seu mundo próprio”, explica, ressaltando que fazem toda diferença, nesse processo, detalhes minúsculos que, no entanto, pedem pesquisa. “Objetos, hábitos, práticas comuns que não poderiam ser computadas pelo bem da ordem e da moral… É um trabalho de reconstrução, do contrário o personagem é oco, é um mero títere, e torna a ficção histórica inverossímil”, complementa. Algumas leituras 2 de Julho: a carta de alforria / Cleise Furtado Mendes / Caramurê / R$ 44,00 A independência do Brasil na Bahia / Luís Henrique Dias Tavares / Edufba / R$ 45,00 Viva o povo brasileiro / João Ubaldo Ribeiro / Alfaguara / R$ 78,00 O touro do rebanho / Krishnamurti Góes dos Anjos / Chiado / R$ 20 História e histórias da Bahia / Vários / Caramurê / R$ 90,00 O pêndulo de Euclides / Aleilton Fonseca / Bertrand / R$ 36,00 A eternidade da maçã / Marcus Vinicius Rodrigues / 7Letras / R$ 27,00 Sete dias em setembro / Victor Mascarenhas / P55 / R$ 50,00 O borbulhar do gênio / Saulo Dourado / Caramurê / R$ 54 O projeto Bahia livre: 200 anos de independência é uma realização do jornal Correio com apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador.

Você sabia que o Itamaraju Notícias está no Facebook, Instagram, Telegram, TikTok, Twitter e no Whatsapp? Siga-nos por lá.

Últimas notícias

Pacheco defende lei sobre IA para não precisar de Judiciário

Presidente do Senado diz que projeto deve passar no 1º semestre porque o Poder...

“Ela é o máximo”, diz ator sobre namoro com Giovanna Ewbank

Dudu Azevedo pegou a web de surpresa ao revelar que teve um breve relacionamento...

Municípios aprovam contrato unificado para privatização da Sabesp

Os municípios paulistas que compõem a Unidade Regional de Serviços de Abastecimento de Água...

Auxílio reconstrução para vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul deve começar a ser pago neste mês

O auxílio reconstrução para as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul pode...

Mais para você