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Que desterrados somos nós?

Leio que o Sistema Solar e a nossa galáxia, a Via Láctea, viajam neste momento pelo universo a uma velocidade de 600 km por segundo. Sim: eu, aqui sentado ouvindo Thelonious Monk e escrevendo esta crônica, você que por acaso me lê e os quase oito bilhões que habitam esta enorme esfera feita de terra, ar e água estamos sendo projetados vertiginosamente rumo a um poderoso campo magnético, que os cientistas chamam de Grande Atrator. Mas não chegaremos até ele. Antes, dentro de alguns bilhões de anos, a força da energia escura destruirá o universo. Ou seja: de um jeito ou de outro estamos condenados.

Retorno à minha insignificância. No último domingo, dei um passeio com minha mãe pela Cidade Baixa. Uma região de Salvador que, tal qual um campo magnético, atrai para ela lembranças imanentes. Proliferam reminiscências enquanto rodamos pela Calçada, pelo Bonfim, pela Ponta de Humaitá: a antiga fábrica da Fratelli Vita com suas garrafas expostas. Uma escola onde ela estudou. A loja onde seu pai comprava bugigangas para lhe presentear. A casa onde morou e conheceu meu pai, que morava ao lado. Estou aqui unicamente graças a esse encontro entre vizinhos.

Minha mãe lembra sobretudo do seu pai, o avô que não conheci, morto aos 45 anos quando ela tinha 20. Saudade que não cessa, como um minadouro jorrando ininterrupto. Passados 81 anos de uma vida atribulada, minha mãe sabe o poder que tem a memória de manter vivos quem amamos. Sabe ainda que a fé é uma forte aliada para permanecer e prosseguir. Recordo os versos de Adélia Prado: “Que o mundo é desterro eu toda vida soube/Quando o sol vai-se embora é pra casa de Deus que vai/Pra casa onde está meu pai.”

Preenchemos o vazio com mais vazio, como uma dor criada para curar outra dor. Que desterrados somos nós, tentando encontrar a nós mesmos num vale de lágrimas que nos esmaga pelas ausências em série? Vemos peças desabarem ao nosso lado no tabuleiro, até o dia em que nós mesmos desabaremos, peões, cavalos e torres sem nome. Ah, o tempo, esse grande escultor, como bem definiu Marguerite Yourcenar. Ou seria o grande exterminador? “O tempo curará tudo. Mas e se o tempo for a doença?”, pergunta-se o anjo Damiel em Asas do Desejo.

Cura ou doença, libertação ou cárcere. Não sei o que é o tempo, qual a sua extensão ou espessura e nem sequer de que matéria-prima é feito. Nós, que somos breves curtos-circuitos separados por eternidades de escuridão, talvez nunca cheguemos a um esboço de resposta, nem mesmo um clarão, uma fagulha de epifania que mostre o que é isto a que chamamos vida. No bonito romance Amor e Lixo, que ocupa nesses dias a minha mesa de cabeceira, o tcheco Ivan Klíma busca alguma chave em meio ao breu:

“O homem caminha na natureza, busca a esperança e espera o milagre, espera encontrar alguém que responda a suas perguntas. Um monge qualquer, um ermitão, um Buda iluminado, um profeta ou ao menos um pássaro ou uma árvore, para que lhe diga se foi dotado de alma, cuja vida nem a morte interrompe, para que lhe diga de que fibra foi tecida a vida, o que há acima do homem, que ordem, que criatura ou existência, com que estrondo começou o tempo, de onde vem e para onde vai; o homem caminha na natureza e espera um encontro, espera apenas um sinal cuja aparência desconhece.”

Conjuntos ambulantes de átomos repletos de questionamentos, prosseguimos. Enquanto não vem o milagre, tateamos na lama da incompreensão. É o nosso fado, a nossa desventura. Então concebemos filhos, romances, versos, afrescos e sinfonias, numa tentativa vã de nos eternizarmos na fugacidade. Amamos, sofremos, dilaceramos. Erguemos e destruímos coisas belas indefinidamente, como civilizações que se convertem em entulho para depois brotarem novamente do nada. Tudo isso para quê?

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