Em 1832, bem antes da abolição da escravidão, já havia registros de uma associação negra organizada para oferecer auxílio funerário, auxílio-doença e até para a viúva dos associados. Era a Sociedade Promotora dos Desvalidos, a primeira registrada no Brasil por negros e para negros, até hoje com sede no Pelourinho. O local foi uma das paradas do Rolê Afro, ação do projeto Salvador Capital Afro, que desembarcou no Centro Histórico este fim de semana.
As 120 pessoas que participaram no domingo (11) fizeram um tour diferenciado. Com início no Elevador Lacerda, o passeio teve seguimento no Memorial das Baianas, em frente à Cruz Caída, para uma conversa sobre a gastronomia afrobaiana com Rita Santos, diretora da Associação Nacional das Baianas de Acarajé.
A próxima parada foi a escultura de Zumbi dos Palmares, onde a guia Sayuri Koshima fez questão de reforçar a importância da estrutura dos quilombos como resistência dos povos escravizados. “A primeira coisa que temos que entender é que Zumbi não é passado, é presente”, iniciou.
Koshima atua como guia há 10 anos e reforça que a negritude se encontra em todas as ruas de Salvador. “Não tem como fazer um tour que não seja afrocentrado em uma cidade em que 80% da população é negra. A cidade de Salvador é afro”, afirmou.
Em frente à Sociedade Protetora dos Desvalidos, criada em 1832, no Centro Histórico (Foto: Paula Fróes) |
No bar O Cravinho, no Terreiro de Jesus, ela explicou que o cravinho não é apenas uma cachacinha com mel e limão. A bebida acabou fortalecendo um “ponto de encontro da comunidade negra”. Já na Sociedade Protetora dos Desvalidos, que fica em um imponente prédio azul no Cruzeiro de São Francisco, foi a mestre em geografia Regina Célia, que falou sobre o ponto de encontro entre homens pretos, há dois séculos.
“Como eles não podiam se reunir, a não ser sobre a égide da igreja católica, utilizaram a estratégia da estrutura vigente e passaram a adorar uma santa branca”. Na época, o local era chamado de Irmandade de Nossa Senhora da Soledade Amparo dos Desvalidos. Esse era o lugar onde faziam reuniões, documentadas em atas, e discutiam assuntos que dariam início a pautas como o direito à previdência após a aposentadoria. Isso já desmistifica a ideia de que os negros não se organizavam ou produziam conteúdos juntos”, explicou.
A Feira Afroempreendedora também integrou a programação (Foto: Paula Fróes) |
O passeio guiado terminou na feira para afroempreendedores no Santo Antônio, que reuniu comerciantes como Fabiana Pontes. Dona de uma loja de bijuterias (@ouromimancestralidade), ela confecciona as peças que têm relação com os orixás. “Eu sou uma mulher preta de candomblé e eu tinha dificuldade de encontrar lojas de acessórios que tivessem referências da religião. Eu não queria usar apenas a minha conta de axé, então fiz e me tornei uma empreendedora”, disse.
O projeto Salvador Capital Afro envolve diferentes dinâmicas e mobiliza pessoas para reconectar o soteropolitano com as suas raízes africanas. “Como é um projeto do âmbito do turismo, começa internamente, porque a gente entende que o turismo só acontece se o cidadão da cidade estiver coadunando com a mesma ideia, e depois se expande”, explica uma das líderes do projeto, Mylene Alves.
No sábado (10), primeiro dia do Rolê Afro, aconteceu show do MiniStereo Público e do Samba Trator. Já ontem, os participantes tiveram um encontro com grupos de capoeira Mangangá, Arte Baiana e Agô Capoeira, capitaneados pelo mestre e músico Tonho Matéria, além do show da cantora Aiace. Embora a programação dos próximos finais de semana ainda não tenha sido divulgada, a previsão é que o evento passe pelos bairros do Rio Vermelho, Itapuã e Ilha de Maré.
Realizado pela Prefeitura, através da Secretaria de Cultura e Turismo e em parceria com a Secretaria da Reparação, o projeto tem financiamento do BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento e é mais uma ação implementada do Plano Afro em Salvador.
*sob orientação da subchefe de reportagem Monique Lobo