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Somos tanto e somos tão pouco

Esta é só mais uma dessas tantas histórias de vidas solapadas pelo acaso. De pessoas desterradas da própria existência por conta da imprudência e da irresponsabilidade alheias. Um homem morreu no domingo, dia da eleição. Estava indo para o trabalho, por volta das seis da tarde, quando foi atropelado por um carro, cujo motorista fugiu sem prestar socorro. Sim, um trabalhador. Sim, em pleno domingo. O corpo desse homem ficou no asfalto até uma da manhã.

Eu o conhecia. Era o porteiro da noite no prédio onde moro. Nilson era seu nome. Estava vindo para cá. Enquanto eu comemorava o resultado da eleição para presidente com festa, gritos e música, ele dava adeus ao mundo da maneira mais torpe, mais injusta, mais absurda. Só fiquei sabendo no dia seguinte. Negro, alto, forte, Nilson era um sujeito boa-praça e conversador. Ouvia sempre, daqui de cima, a sua voz anasalada falando com algum morador na portaria.

Mas pouco sabia da sua vida: quem amava, que aspirações cultivava, para que time torcia e até mesmo em quem votou para presidente. Sua morte me deixou chocado e comovido: brutalidade, pusilanimidade e perplexidade em todo seu tenebroso esplendor. Ainda me soa estranho usar os verbos no passado para me referir a Nilson. Passei os últimos dias padecendo de um sentimento de amargura e mesmo de um certo remorso, como se de alguma forma tivesse sido responsável por aquilo. Essa dor doeu mais forte, diria Zé Geraldo.

É uma morte que não faz o menor sentido. Mas, afinal, o que faz sentido? A quem culpar por uma vida tragada em seu auge, além, obviamente, do motorista canalha e covarde? Os religiosos têm ao seu dispor uma resignação obstinada, mas e quanto aos ateus? Para mim, ficou ainda mais clara a nossa absoluta insignificância. A existência, que à primeira vista parece um incêndio arrebatador e quase incontrolável, é na verdade pouco mais que uma faísca, um sopro, um soluço. Som e fúria sem sentido algum.

Em um de seus poemas, Borges se pergunta: “Como pode morrer uma mulher ou um homem ou uma criança, que foram tantas primaveras e tantas folhas, tantos livros e tantos pássaros e tantas manhãs e tantas noites?”. É que somos tanto, velho poeta, mas também somos tão pouco. Castelos de areia na beira do mar, como na velha canção de Hermes Aquino. Volto a Borges: “De que Adão anterior ao paraíso, de que indecifrável divindade somos, os homens, um espelho partido?”

Impossível encontrar resposta. Até porque, de acordo com o próprio gênio portenho, “a máquina do mundo é complexa demais para a simplicidade dos homens”. E a nós, seres simplórios e vulneráveis, só resta tentar desviar do perigo que espreita em cada cruzamento ou em cada célula cancerígena. Em cada artéria entupida ou em cada queda inesperada. Um passo em falso e então findamos, que nem coelhos, formigas ou arbustos.

Como atesta Annie Ernaux em Os Anos: “Tudo vai se apagar em um segundo. O vocabulário acumulado, do berço ao leito final, será eliminado. Restará somente o silêncio, sem palavra alguma para nomeá-lo. Da boca aberta não vai sair mais nada. Nem eu, nem meu. A língua continuará inventando o mundo com palavras. Nas conversas ao redor de uma mesa em dias de festa, nós seremos apenas um nome, cujo rosto vai se desvanecer até desaparecer na massa anônima de uma geração distante.”

O fato é que prosseguiremos, do mesmo modo que sempre prosseguimos. A essa altura, alguém já deve ter substituído Nilson na portaria daqui do prédio. Em sua casa, a ausência será sentida por anos. De início, uma ferida que não fecha, dolorida e incandescente. Depois, em forma de resignação e um oco no peito de quem ficou. Tatuagem indesejada que traz más reminiscências. É a vida que segue, nos desferindo perdas sucessivas como um toureiro que vai sangrando o touro aos poucos.

Em todas as casas, das mais abastadas às mais miseráveis, guardam-se retratos, objetos, roupas e recordações que perpetuam ou tentam perpetuar existências extintas. É necessário mantê-los, mesmo que as fotos percam a nitidez, as roupas fiquem mofadas pela falta de uso, a memória falhe e os objetos se recolham a baús e fundos de armário. Guardar é uma maneira de dizer não ao esquecimento. É reprimir inutilmente – mas também estoicamente – a passagem inevitável do tempo para quem vai e para quem fica. Ainda que só reste um fiapo de lembrança ou uma foto 3×4.

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