Vivemos a crise do delírio. Espécie de cancelamento da fantasia, a racionalização da música brasileira deve ter começado lá pelos finais dos anos 1970 para atender às demandas dos primeiros ambientes industriais da cultura pop. De repente, tudo tinha de soar bem explicadinho para agradar aos primeiros receptores passivos. De repente, ninguém mais ousou levar um ouvinte a outras galáxias, mostrar-lhes “corvos marinhos voadores” e apresentá-los ao próprio apocalipse. Ninguém mais, exceto Zé Ramalho.
Dez anos depois de lançar Sinais, Zé ressurge com Ateu Psicodélico (selo Discobertas) – a partir desta sexta, 9, nas plataformas digitais. Aos 72 anos, ele ainda sabe onde encontrar suas melhores canções e quais portas abrir para acessar um espantoso delírio criativo. Ateu Psicodélico, feito durante a pandemia, tem 12 canções novas e participações do sanfoneiro Waldonys e dos guitarristas Andreas Kisser (Sepultura) e Robertinho do Recife. O paraibano de Brejo da Cruz fala ao Estadão, com exclusividade:
Você escreveu em um breve texto sobre o trabalho que “esse disco é um manifesto, um turbilhão de imagens e vocábulos para contrastar com a música praticada atualmente no Brasil”. Que música é essa?
Todas as músicas praticadas no Brasil são repetitivas. Não há nada de especial em nenhuma delas. Temas românticos cotidianos e divagações leves sobre política ou casos isolados são repetitivos em quase todas as situações. Como disse recentemente Guilherme Arantes: “Não há mais delírio na música brasileira”. E eu sou o fornecedor de delírios desde o primeiro disco. Na música Vila do Sossego, do primeiro álbum, está a frase: “E nos delírios, meus grilos temer”… Não quero desvalorizar, com isso, quem não delira quando faz música. Mas é um gatilho que, quando é acionado, provoca reações em quem ouve e escuta canções delirantes. Volto a dizer: não estou criticando nem derrubando nenhuma forma musical da música brasileira, mas estou, sim, me referindo ao comportamento passivo de todas que são feitas. Se alguém se ofender, paciência.
E sobre a audiência? Você acredita que ainda é possível modificar pessoas com a força da mensagem de uma música?
Claro que é possível! Depende da audiência. Os ouvintes também mudaram – contudo uma canção, um filme, uma imagem podem despertar na mente reações que estavam silenciadas. Quando você vê uma imagem que chama a sua atenção, você pensa no que está vendo. Numa música é mais movimentado ainda o pensamento, porque tem as sonoridades da composição, que atuam junto às letras que formam imagens e deixam o ouvinte feliz ou agoniado.
Alguns dizem não entender suas letras. Mas o mistério de uma poesia não é parte do discurso? O não inteligível pode dizer mais do que aquilo que se entende?
Uma vez perguntaram a um habitante das regiões ribeirinhas do Brasil, era uma pessoa que estava escutando rádio e ouvindo uma das minhas músicas: “Você entende alguma coisa do que está ouvindo?”. E a pessoa responde: “Não entendo, mas acho bonito”. Isso é o que importa. Entender também importa, mas o que é mais importante é chamar a atenção com algum artifício que emociona. Racional é a maioria das canções de hoje em dia. Fácil de se entender, mãozinha pra cima, sai do chão… Eu produzo, muitas vezes, a negação da racionalidade. Surrealismo é isso. É você distorcer, modificar e aumentar o alcance de sons e imagens, letras e sentimentos.
Sua voz ressurge, mesmo alguns anos depois do último álbum e depois de um período de reclusão, com brilho. Há algo que explique isso, tecnicamente falando?
Minha voz é um mistério para muita gente. Não tenho nenhum cuidado, mas ela está dentro de mim e, agora, mais que nunca, aos 72 anos, troveja assustando e deliciando muitas plateias. É uma das minhas habilidades de que me orgulho, mas não tenho cuidado nenhum em gargarejos, em pastilhas, e essas “benzeduras” populares, que tanto se apregoam, não fazem parte do meu trovão. Como eu digo no verso da música Repentista Marvel do novo disco: “Não bula comigo não / Que quando eu canto tudo cala / A montanha se abala / E fica diferente o ar”.
Como tem visto o País politicamente nestas vésperas de eleições?
Nosso país passa por novas experiências políticas. A população dos eleitores cresceu. Há os novos eleitores que conseguiram antecipar a idade para votar, os de sempre, que adoram votar, e os que, como eu, atingiram 70 anos e estão liberados desse “sacrifício”. Eu não me envolvo mais com nenhuma dessas escolhas Acompanho tudo pelos telejornais e continuo achando que a vida é uma vida de gado, o povo é um povo marcado e também é um povo feliz!
Composições, Zé. Ouvir uma canção sua é como assistir a um filme de ficção científica de grandes imagens, naturezas em revolta, destruição e criação. Qual a origem dessa característica pouco explorada na música brasileira?
No início, nos anos 70, quando eu comecei a desenvolver essa linha de compor, eu lia muitos livros. Eram os Deuses Astronautas, O Planeta das Possibilidades Impossíveis e o mais recompensador de todos que foi a obra Admirável Mundo Novo. Todos esses livros foram lidos nessa fase da minha vida. Hoje, não leio mais nada. Me lembro também de Marquês de Sade (Os Infortúnios da Virtude). Me lembro de O Livro de São Cipriano, os mais proibidos. E talvez o mais precioso em riqueza de imagens, O Apocalipse de São João. Isso foi nessa época dos anos 70, e, hoje, mais do que nunca, me detenho na minha casa para assistir a filmes, apaixonado pelo cinema como sou. Diariamente, faço a minha sessão particular única e busco não só a diversão, como a inspiração nesses filmes. Ficção científica, heróis da Marvel, situações apocalípticas e quanto mais mentiras tiver, mais acho divertido. Não gosto de filmes que contam estórias de sofrimento e que tenham doenças. Procuro unir diversão com inspiração.
Há três nomes no álbum sobre os quais gostaria que comentasse Waldonys, Andreas Kisser e Robertinho do Recife. O que essas pessoas trouxeram?
Waldonys tornou-se um superastro da autêntica música nordestina. Sua habilidade e rapidez com a sanfona são inalcançáveis! Eu digo a ele: “Você é o gatilho mais rápido do Oeste”. Andreas Kisser, por excelência, é um metaleiro e, mesmo metaleiro, sempre procurou juntar a pesada sonoridade do metal com outros sons. E Robertinho de Recife já é um dos maiores de todos. Tenho o privilégio de trabalhar com ele há 20 anos.
Ateu psicodélico. Parece uma boa forma de defini-lo. Mas o mesmo “ateu” com relação a um Deus central tem tantas outras crenças, não?
O Ateu Psicodélico é uma fase da minha vida em que não acredito nas divindades das religiões. Todos que acreditam em alguma religião têm sua fé e a partir do momento que lhes dá esperança e conformismo, que seja! Tenho o meu direito de pensar assim, sem desmerecer nenhum culto que existe, apesar de saber que todos estão ligados a uma questão financeira.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.