UGA UGA

Tá lá na teoria da evolução e seleção natural de Darwin, o canibalismo animal coerentemente justificado entre diversas espécies: pela alta fecundidade e luta pela sobrevivência eliminando indivíduos imediatamente reconhecidos como comida ao nascerem defeituosos; o canibalismo sexual após o coito para o consumo das proteínas do macho que vão fortalecer a prole; o heterocanibalismo quando o rei leão devora os filhotes de outros machos que é pra que ninguém venha mais tarde contestar a sua autoridade máxima; a adelfofagia entre irmãos durante a fase embrionária. Até aqui tudo bicho.

Os primeiros relatos sobre costumes antropofágicos foram feitos por viajantes europeus pela América do Sul que teriam testemunhado indígenas que comiam os corpos dos inimigos em campo de batalha. Tradições que existiram (não sei se existem mais) inclusive aqui em Rondônia onde o povo Wrai lida com a separação pela morte com os seus entes preparando refeições com seus corações e vísceras para lembrarem-se que o que resta neste plano é só um corpo igualzinho àqueles que caçam diariamente, e desta forma se desfazem dos vínculos materiais.

Cena do filme O poço

(Foto: Divulgação)

Até aqui tudo certo e justificado pelas tradições culturais. Mas quando chega ali na Idade Média, no berço greco-romano da civilização, o canibalismo humano (antropofagia) começa a ser visto e estudado posteriormente como ato da psique ligado ao desejo, dor e prazer hoje tratados como transtornos mentais graves. Mas também em alguns casos – como vimos nas sessões de cinema-catástrofe sobre sobreviventes de acidentes de avião em zonas inacessíveis –  por instinto de sobrevivência.

[Lembrança aleatória: lembra da vaca louca? Teve a ver com a farinha de carne e ossos da própria espécie utilizados pela indústria para baratear e “fortificar” a ração daqueles animais – uma modalidade de canibalismo (que eu vou chamar aqui de industrial) propensa a adquirir doenças ligadas a parasitas ou agentes patogênicos da própria espécie, pelo dedo ruim do homem que deu no que deu]. 

Você viu O Poço, aquele filme espanhol lançado pela Netflix durante a pandemia? Pois assista. Mas se não quiser spoiler, pare por aqui porque esse filme foi o mote da coluna de hoje. 

Acontece numa prisão que parece testar todos os limites da civilidade humana ali na linha que nos separa a todos do nosso lado bestial, despertado pela fome na beirada do precipício da morte. Pois muito bem, nessa prisão vertical, com dois prisioneiros em cada nível, há um fosso central por onde desce diariamente uma plataforma ostentando uma imensa mesa de banquete lotada das mais finas iguarias com paradas de apenas 2 minutos em cada nível (e até então não fazemos idéia de quantos são).

Acontece que os prisioneiros do primeiro nível, que hoje refestelaram-se sem privações, podem acordar amanhã no fim do poço. E o que terá sobrado lá no último nível para sobreviver por um mês? 

É nesse trajeto vertical de poço que o filme vai desenhando, com requintes de extrema violência e selvageria, a escrotidão humana e sua transformação bestial em condição de desespero nesse lugar que desconhece qualquer código de ética, regido apenas pelas leis da fome – onde vale tudo pela sobrevivência, inclusive comer o companheiro antes de ser comido. 

Os de cima cospem, regurgitam, mijam e cagam nas sobras que vão sendo devoradas até que não exista mais nenhum vestígio de cocô na mesa de banquete já nas primeiras dezenas da primeira centena de níveis, que em determinado momento sabemos, são 333.

Mas o que a gente descobre depois é que a quantidade de comida que é colocada na plataforma foi calculada para alimentar a todos os prisioneiros até o último nível, caso fossem capazes de se alimentar só com o necessário. É quando a gente percebe que o filme de horror na verdade fala sobre solidariedade. Mas quem é capaz de ouvir o messias? Haverá como reverter a lógica da (ir)racionalidade humana? Hein?

Eu acho engraçada a classificação destes filmes como distópicos. Basta mais um desastre ecológico, um vírus, uma guerra, um triz para uma condição de extrema opressão, desespero e privação, e a gente faz bife do coleguinha fácil. Tem distopia certa.

Bom, não cabe receita na coluna de hoje, concordam? O quê? Steak Tartare De Si Mesmo? Não, né? Mas lembrei de um trecho de uma música engraçada de Arrigo Barnabé chamada Uga Uga, que é pra ver se dá pra descontrair um pouco aqui no final desta coluna tão putrefata de hoje.
Beijo!

“ Você dança e me deixa mais quente
Quando ri tem um brilho nos dentes
Você vem pra me dar a mordida
Eu disfarço mas tou numa fria
Toda linda você me domina
Tou com fome não tem mais banana
Uga Uga, Uga, Uga-uga
Tou com fome não tem mais comida
Uga Uga, Uga, Uga-uga
Vou tentar devorar um buana,
carne humana é muito bacana”

Kátia Najara é cozinheira e empreendedora criativa do  @piteu_cozinhafetiva

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