E agora, José, que há tantos cegos? Entrincheirados nos semáforos fronteiriços de um mundo em branco, avançam com suas armas. Desconsolado, um Drummond de bronze enfrenta os tontos em Copacabana, que o atacam. Este não é um tempo bom para os poetas. Não mais o verso livre, o riso em riste, a leveza da esperança. Não mais o amigo baiano, que hoje descansa nos jardins da Casa do Rio Vermelho.
Também o bronze ali os guarda, ainda seus, Jorge e Zélia. No largo aberto em frente à praia, plasmada em Dois de Fevereiro, essa amizade que se expandiu nos ultramares de uma velhice intensa, inteira. E, agora, José, que há tantos cegos? Das cinzas do fascismo, voam aves agourentas. Com mãos vazias, e dedos feridos, tateamos uma saída, antes que o horror se defina em formas nítidas no escuro do século.
Mas você é duro, José, você resiste. Do outro lado, noutra planície, ora por nós, contrito. Em seu céu de ateu, em seu paraíso sem vírgulas. Que mar infinito, esse tempo há de ser. Horizontes que intuímos, feitos de portos e de línguas que desfazem e refazem seus próprios ritos. Não mais o anil que funda a distância entre dois países, mas uma outra cor que atribuímos às letras e aos livros que cruzam o Atlântico.
A invasão ao Brasil, a violência contra os povos originários. Nossa história é feita de sangue, José. E agora? Lembra o sol forte da Cidade da Bahia? Exu a postos, guardando as suas costas nas escadarias da Fundação Casa de Jorge Amado. A Festa de Iemanjá, e seus pés metidos em chinelos de dedos, todo o azul do mar do Rio Vermelho ao fundo. De branco, branco entre os negros, o sorriso sério do estrangeiro.
Braçadas de flores carregadas pelas ondas, na Praia da Paciência. Pedidos feitos, pedidos aceitos. O cheiro forte de alfazema subindo dos balaios. A beleza de toda prosa refletida nos espelhos. A fé sem nome que desvelava, na escuridão, o véu de um futuro que, por milagre, nos tornaria imensos. Há tantos cegos, José, e agora?
Que nos dirá você que os viu primeiro?
*Texto publicado na antologia “Cartas da Bahia a José Saramago” (Pontes, 2023).