Se somos aquilo que comemos, como disse Hipócrates lá na Grécia antiga, então somos mesmo um povo colorido. Afinal, consumimos ingredientes que formam uma paleta de cores infinita. A gastronomia produzida aqui na Velha São Salvador é carregada de cores, de variações de tons, e, claro, de sabores. Do vermelho alaranjado do azeite do dendê aos muitos tons de amarelo do milho, do verde do coentro e da cebolinha – que chamamos carinhosamente de cheiro verde – passando pelo colorido das pimentas, pelo branco do leite de coco, e de tantas outras cores presentes nos ingredientes locais podemos afirmar que nossa cozinha é alegre, viva e pulsante. A gastronomia feita aqui é multicolorida como é a nossa cidade que hoje completa 474 anos.
Essa paleta, segundo o chef de cozinha baiano Rodrigo Freire, que comanda o restaurante Preto Cozinha, na capital paulista, possui as cores básicas que formam os demais tons. “Isso é raro na gastronomia do resto do mundo”, diz. Segundo ele, a culinária baiana reflete as cores marcantes da cidade. “Quando não diretamente, de alguma maneira se complementa na paisagem. Seja o amarelo ouro do dendê que em alguns pratos pode, além de cumprir a missão de saudar um orixá, contrastar com o verde do mar trazido do coentro. Essa combinação de cores dos temperos é que fazem da nossa comida algo tão único, exuberante e surpreendente”, conclui.
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Embora seja um tema pouco abordado em estudos culturais, o colorido vibrante da culinária baiana desperta curiosidade nos estudiosos. É o caso do doutor em sociologia e antropologia Ericivaldo Veiga que diz que Salvador merece um bolo de aniversário colorido e empoderador porque nossa comida, além de ter muita cor, é empoderada. “Os tons de amarelo, verde e branco predominam na pegada ótica dos pratos tradicionais da cozinha baiana, especialmente da capital e do Recôncavo Baiano. Fico encantado com este arco-íris somado a muitos outros sentidos, não menos importante como o olfato (cheiro da moqueca), audição (chiado da fritura do acarajé), o bater da colher de pau na panela no qual a baiana mexe a massa), dentre outros”.
Veiga ressalta que esse conjunto integrado de sentidos, liderado pela cor, ou imagem visual, contribue para o baiano – principal consumidor dessa culinária – formar uma percepção distinta da culinária como um dos importantes traços identitários. “Assim, as comidas na sua diversidade de cores empodera porque para além da função nutricional, é representativa de modos de ser e de estar do grupo que produz e consome os pratos nos tons de dendê, das folhas verdes, dos grãos brancos, pretos ou das raízes da mandioca para o fabrico de farinha a qual, junto como azeite formam os principais itens da mesa baiana de origem africana”, completa o pesquisador.
Para o professor Veiga, a comida baiana empodera porque é da mesa colorida que vem a inspiração para a literatura, a música e o cinema mostrarem o cotidiano do soteropolitano. “O romance Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Jorge Amado, é um exemplo disso: foi dos pratos em tons de dendê que o escritor se inspirou e que fez a ‘sétima arte’ colorir as telas com cores comestíveis. A nossa culinária é a pintura baiana que decora os ambientes, influencia a moda, movimenta as redes sociais com imagens de pratos vibrantes etc”, defende.
A comida empodera ainda mais, segundo ele, “quando se sabe que o encantamento cromático se origina no Terreiro de Candomblé junto ao som dos atabaques chamando o orixá, da habilidade da cozinheira encantada preparando a farofa, mexendo o ipetê dourado para Oxum, cortando o quiabo todo verde para Xangô, Iansã e seus filhos meninos comerem tornando o ato coletivo”.
Percepção
Essa percepção da infinidade de cores na cozinha baiana começou a ser percebida nos idos de 1940 quando ela passa a ser valorizada. Quem defende essa tese é o professor Vilson Caetano, doutor em antropologia e professor da Universidade Federal da Bahia. Segundo ele, as cores presentes na comida local remetem a sentimentos e a história. “Ela é intensa, e essa intensidade é dada pelo vermelho alaranjado do azeite de dendê, afinal somos o povo do azeite, do amarelo da pimenta que aquece nosso coração porque é força, é energia; do verde do coentro, uma herança portuguesa, que é usado não apenas para ressaltar o sabor dos pratos, mas para finalizar. Não como enfeite, mas como o “grand finale” tornando nossa comida vibrante, resultado da sua variedade de cores que estão atravessadas de significados”, conclui.
Este conteúdo especial em homenagem ao Aniversário de Salvador integra o projeto Salvador de Todas as Cores, realizado pelo Jornal Correio, com patrocínio da Suzano, Wilson Sons, apoio institucional da Prefeitura de Salvador e apoio da Universidade Salvador – Unifacs