Se existe um grupo de amigos que levou as cores de Salvador para o mundo dos mais diversificados sentidos, sem dúvida, é o quarteto imortal formado por Jorge Amado, Pierre Verger, Carybé e Dorival Caymmi. Através da percepção deles, fomos para a literatura, a música, a fotografia e a arte. Se o Brasil e o restante do mundo conhecem a tonalidade do mar, do céu e do povo soteropolitano, a baianidade, enfim, devemos aos compadres, obás de Xangô no Afonjá, que ultrapassaram a cartela convencional de cores para interpretar a Cidade da Bahia, como a velha guarda chamava carinhosamente a capital de 474 anos.
Todos já estão habitando Orum, o mundo espiritual do candomblé. Eles sempre divergiram como se conheceram, mas compartilhavam a mesma paixão: Salvador. Fosse o mar, o candomblé, a fé, os costumes, o povo ou as festas populares. Tudo parecia servir de inspiração. E a cor sempre esteve presente, seja representada nos romances de Amado, nas canções de Caymmi, na arte de Carybé ou nas fotos monocromáticas de Pierre Verger que, por incrível que pareça, conseguiu mostrar uma policromia imensa dentro daquele preto e branco cheio de expressões do cotidiano da capital.
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Curiosamente, apenas um era soteropolitano: Ilhéus e Itabuna ainda brigam pelo status de terra natal de Amado. Carybé era argentino e o francês Pierre Verger estava cansado da Europa e buscava um novo propósito. Foi justamente com este desejo que Verger veio trabalhar em Salvador, como repórter fotográfico dos Diários Associados, na década de 40. Se apaixonou pela capital e turbinou a Revista Cruzeiro com os costumes da nossa capital. Ele tinha liberdade criativa e, assim, atraía um Brasil que desconhecia Salvador, mas conseguia enxergar seu colorido nas fotos de Verger.
De acordo com um estudo da doutora em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, Juciara Maria Nogueira, entre 1946 e 1951, foram encontradas 25 reportagens na Revista Cruzeiro sobre Salvador. Estas matérias incorporaram 373 fotografias de Verger, além dos textos de Odorico Tavares, que corroborava a intenção do fotógrafo.
Pierre Verger traduziu as cores de Salvador no seu preto e branco (Pierre Verger) |
“Todas as reportagens do período pesquisado demonstram uma conotação eminentemente popular e a maioria dos temas escolhidos estava profundamente ligada ao dia a dia do povo simples, abordando seu ambiente de trabalho e lazer, seus afazeres, costumes, crenças e hábitos”, afirma Juciara, no artigo sobre a relação entre Verger, Salvador e a Revista O Cruzeiro.
“Verger traduziu em imagens os poetas da literatura de cordel, os frequentadores de terreiros de candomblé, os sambistas, as baianas com seus ricos trajes… Só a partir de então vai-se destacar a Cidade da Bahia já descrita por Jorge Amado e cantada por Dorival Caymmi, agora em imagens de Pierre Verger”, completa.
Foi justamente em uma destas matérias (em maio de 1947) que Verger cruzou com Caymmi. Nesta ocasião, Carybé e Amado já faziam parte do grupo que traria coloração especial de Salvador para o resto do mundo, mas cada um do seu jeito. O que movia Dorival era a saudade. Desde a década de 30, morava no Rio, onde virou artista consagrado, mas falando sempre de sua infância na Bahia e, principalmente, de seu estilo musical único. “Nunca sai da minha rota baiana e praieira. A Cidade da Bahia é minha alegria”, resumia Caymmi em qualquer entrevista que concedia.
O primeiro sucesso foi justamente mostrando o que é que a baiana tem, que consagrou a imagem de Carmen Miranda fora do país. A canção fala da vestimenta das baianas: “Tem brincos de ouro, tem! Corrente de ouro, tem!”. Entre suas mais de 100 composições, uma paixão era evidente: o mar de Salvador. As descrições dos mais variados tons de azul e verde da água salgada rechearam o repertório de Caymmi com pescadores, amores praianos e, obviamente, Iemanjá.
“Aquele som indefinível, o produto da mistura dos dois azuis, aquele azul do céu, aquela bonita linha do horizonte, o azul verde do mar, aqueles murmúrios de ondas do mar… Eu costumo dizer que minha música é o reflexo dessas contemplações. O que muita gente chama de preguiça, chamo de contemplação”, disse Caymmi, em entrevista à GloboNews na década de 90.
A paixão pelas cores o fez buscar a pintura como passatempo, sob influência direta do amigo Carybé. Caymmi chegava a brincar, dizendo que já estava pintando melhor que o argentino, mas todos viam que os traços eram reflexo do outro.
Bahia argentina
Aliás, quem iria imaginar que um argentino seria a cara da obra de arte baiana? Filho de ciganos, Carybé já frequentava a Bahia no final da década de 30, mas foi a partir dos anos 50 que resolveu ficar e revolucionar a visão do cotidiano soteropolitano com seu colorido único e traços simples, porém complexos, com as cores em movimento.
“Carybé expressou na linguagem plástica os costumes, os ofícios, as crenças e os folguedos do povo baiano, exaltando neles a beleza e dignidade da raça negra, como nenhum artista baiano jamais fizera”, resumiu a crítica e curadora de arte Matilde Matos.
A baiana nos deixou em 2021, aos 93 anos, mas era uma das principais especialistas em Carybé, com textos importantes sobre as obras do artista, como o trabalho A Bahia Vista por Carybé, em que Matos ressalta a escolha dos matizes para representar cada momento do cotidiano do soteropolitano, como um baba de meninos na praia.
Futebol na Praia, de Carybé (reprodução) |
“Sem qualquer outra indicação além das cores e da luz mágica que o artista pintara em torno deles, o espectador sabia que o sol acabara de mergulhar no mar, deixando um resto de claridade, chegando a sentir a temperatura e o cheiro naquele lusco-fusco onde se misturavam vento, neblina e maresia”, escreveu Matos sobre a obra Futebol na Praia.
“A mesma percepção que Jorge Amado tinha para a maneira de falar do nosso povo, Carybé teve para o visual”, documentou Matilde. Carybé foi o principal parceiro de Jorge na ilustração de seus romances. Na verdade, as obras de Amado eram crossovers onde frequentemente Caymmi, Verger e Carybé apareciam no meio da trama, como personagens especiais. Caymmi até paquerou Tereza Batista no romance da Cansada de Guerra (1972). Imagine a resenha…
Saudade tem cor
Quem conviveu com esta amizade, uma das mais importantes da Bahia, sente saudade. Filha de Jorge Amado, Paloma daria tudo para ter mais um tempinho com os tios e seu pai na casa do Rio Vermelho ou na de Itapuã.
“Papai era aquele amigo que juntava todos, se desse, mandava buscar Caymmi no Rio. Pierre Verger era mais acanhado, lembro que estava em poucos encontros. Mas os demais, poxa, era um evento ver eles juntos, contando casos e falando sobre Salvador”, garante Paloma, emocionada.
A escritora lembra que seu pai sempre gostou de cores, principalmente do azul e do verde. Contudo, apesar de descrever a paisagem colorida de Salvador na maioria de seus romances, descrever o povo era a maior habilidade do romancista baiano.
“Papai gostava de incentivar a criatividade do seu leitor. Ele descrevia cores, mas deixava brechas para você imaginar, por exemplo, o que significava a pele de cobre de Tereza Batista. Ou como era o lábio amarelo de dendê deixado em Vadinho quando comia siri-mole, no livro de Dona Flor [1966]. Papai sempre foi muito detalhista, mas também gostava de dar pistas por meio das cores, principalmente de seus personagens”, analisa Paloma.
As cores do soteropolitano e do baiano, em geral, sempre foram a preferência de Jorge, principalmente da população mais pobre e sofrida. Seus heróis quase sempre eram negros que batalhavam por dias melhores. Bem antes da Wakanda do Pantera Negra ganhar o mundo, heróis como Balduíno já lutavam contra a tirania nas obras de Amado. Jubiabá (1935) talvez seja o romance com mais cunho crítico racial, focando nas descrições das cores em Salvador. Em um trecho, uma das personagens indaga sobre a existência de brancos na capital.
“Brancos? Mestre Pedro [Archanjo], não me venha com brancuras na Bahia. Não me faça rir, que não posso, as dores me cortam. Quantas vezes já lhe disse que branco puro na Bahia é como açúcar de engenho: tudo mascavo”, escreve no livro lançado em 1935. Em outro trecho do mesmo livro, ele aborda o racismo velado da sociedade: “No morro onde morava tanto negro, tanto mulato, havia a tradição da escravidão ao senhor branco e rico”.
As mazelas da Cidade da Bahia também ganhavam tons mórbidos nos romances de Jorge, que nem precisava citar cores para demonstrar o cenário obscuro dos becos de uma capital desigual. Mesmo assim, era possível ver as tonalidades. “Se não fôssemos nós, pontais ao crepúsculo, vagarosos caminhantes dos prados do luar, como iria a noite – suas estrelas acendidas, suas esgarçadas nuvens, seu manto de negrume – , como iria ela, perdida e solitária, acertar os escuros caminhos tortuosos dessa cidade de becos e ladeiras?”, poetizou Jorge, em Pastores da Noite (1964), descrevendo como era o matiz das madrugadas soteropolitanas.
Se Salvador ganhou cores que extrapolam o olho nu foi graças a este quarteto apaixonado pela cidade. Foi com eles que identificamos nossas paletas, nossas paisagens e nosso povo, seja na canção, no romance, na fotografia ou na pintura. Eles mostraram o que é que a Bahia tem de mais colorido não apenas na paisagem, mas nos costumes tão característicos.
“Lembro quando tinha uns 14 anos. Eu e o papai fomos buscar Caymmi no aeroporto, ele passaria uns dias conosco. Na época não existia a Paralela, então fomos por Itapuã. Quando nos deparamos com aquele mar, Caymmi gritou: ‘Olha, papá, que marzão verde lindo! E pensar que tudo isso é meu…’. Aquilo mexeu tanto comigo, achei tão bonito. Tudo que Salvador tem pode ser nosso, sim. Todas as cores de nossa capital nos pertencem. E não está errado em dizer que é nosso. Meu, seu, de todos nós”, filosofa Paloma Amado.
Esta edição especial em homenagem ao Aniversário de Salvador integra o Projeto Salvador de Todas as Cores, realizado pelo Jornal Correio, com patrocínio da Suzano, Wilson Sons, apoio institucional da Prefeitura de Salvador e apoio da Universidade Salvador – Unifacs.