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Você sabia que existem dois hinos ao Senhor do Bonfim?

O baiano, pelo menos aquele raiz, deve estar se coçando todo aguardando a segunda quinta-feira do ano para andar oito quilômetros com o sol queimando o juízo até a Colina Sagrada, saudar o Senhor do Bonfim (e Oxalá!) e se emocionar quando alguma fanfarra cantar “Glória ti, neste dia de glóóória…”. Este ano, após dois anos de hiato por conta da pandemia, a mais tradicional lavagem de Salvador terá como tema de 2023  os 100 anos da composição do hino mais famoso na Bahia. Ou melhor, dos hinos. Você sabia que este cântico histórico, na verdade, não é o considerado oficial nos festejos do Bonfim? Existem duas letras, ambas centenárias. Pior: o autor da versão mais popular, Arthur de Salles, morreu no anonimato, sem o devido reconhecimento do seu trabalho que se tornou a música mais importante no estado.  

Para sabermos sobre essa confusão histórica, precisamos voltar no tempo. Mais precisamente, em 1923. Naquele ano, os baianos comemoravam os 100 anos da Independência da Bahia e muitos poetas prestavam suas homenagens. Na edição do extinto Diário de Notícias, do dia 2 de Julho daquele ano, duas páginas estampavam poesias de pessoas influentes da sociedade baiana sobre nossa independência, menos o de Salles. Na época, o poeta recebeu a incumbência do secretário da fazenda de Salvador de fazer a letra que se tornou a mais famosa. De acordo com estudos da Filóloga e doutora em Letras da Ufba, Alícia Duhá Lose, Salles mostra, em carta enviada ao amigo, o quanto se dedicava à letra do hino, que foi uma homenagem não apenas ao Bonfim, mas ao 2 de Julho. 

“Estou cheio de compromissos. Avalie que para a procissão do senhor do Bomfin, número obrigado dos programas da festa, que deve ser bello, fui eu o escolhido para fazer o hymno que tem de ser cantado e distribuido pelo povo. Pedido que me foi feito pelo Secretário da fazenda e approvado já esta o hymno pelo sr. Rvm – Arcebispo.”, escreveu Salles para o amigo Durval de Moraes, em 1923. A grafia pode ser estranha, mas era a ortografia vigente na época. Contudo, enquanto Salles fazia este hino, a Basílica do Bonfim encomendou outra versão, que seria a oficial, mas para outro poeta: Pethion de Vilar, o pseudônimo do médico baiano Egas Moniz. Este hino é até hoje considerado oficial pela igreja e também está fazendo 100 anos, apesar da letra feita por Salles cair na graça do povo e o de Pethion ser cantado apenas dentro da basílica, por fiéis mais devotos e atuantes.  

“Salles era um cara muito tímido e sempre teve uma vida muito lascada. Era professor de colégio agrícola, recebia pouco e vivia fora dos círculos [sociais], embora já fizesse parte da Academia de Letras [da Bahia]. Ele escreveu o hino famoso, que de fato é muito mais bonito, mas o outro que é o oficial. O de Salles é o oficioso, mas foi o que colou. É quase o hino da Bahia”, reforça Alícia Duhá Lose, autora da tese de doutorado ‘Arthur de Salles: Esboços e Rascunhos’. Ela ainda conta sobre um erro grave na história, quando o álbum Panis et Circensis (1968), em que Caetano Veloso populariza o hino de Salles, vem com a autoria trocada: Pethion acaba levando a fama. 

“Ele [Salles] não levou a tal glória pelo que fez. Ainda por cima, quando Caetano coloca o hino no álbum Panis et Circensis, dá uma dimensão muito maior no quesito divulgação da letra, mas com o nome trocado. Colocaram o de Pethion, que foi autor do hino pouco conhecido. Sacanagem! Pior que o Caetano sabia quem era Arthur de Salles, pois o pai dele era muito fã das poesias dele. Escrevi isso na minha tese, inclusive. Tem uma reportagem da revista Cult em que Caetano recita poesias de Salles de cor, mas o erro permaneceu no álbum”, conta Alícia.

De fato, Salles ficou fora da festa. Acabou pouco conhecido na cultura baiana, apesar de sua letra eternizada. Sem reconhecimento, chegou a juntar seus manuscritos e queimar no jardim. Alguns foram salvos pela família, que jogou água à tempo. Não se sabe se a letra original do hino, escrita pelo poeta, foi no bolo. Alícia possuía uma cópia manuscrita da letra do hino, chegou a digitalizar, mas o arquivo acabou corrompido. Salles morreu de cirrose hepática, em 1952. Não viu sua letra ganhar a fama de hoje.

A mais tocada
Entre os músicos baianos, a letra de Salles continua ditando os acordes, seja na lavagem ou no carnaval, enquanto o hino oficial, de  Pethion, se restringe às missas e novenas da Basílica. “A Irmandade do Senhor do Bonfim escolheu o hino de Pethion, um médico da elite baiana. O autor da música era um maestro chamado Remígio Domeneck, autor de ‘Uma lágrima sobre o túmulo de Carlos Gomes’. Era aquele modelo de intelectual pesado, que não tinha nada com o popular, nada moderno. Bem conservador, na verdade”, disse o Maestro Fred Dantas, que fará na próxima quinta, na Lavagem do Bonfim, o hasteamento da bandeira, lavagem e encerramento dos festejos, regendo a Oficina de Frevos e Dobrados, composta de 40 músicos. Ele fará homenagem aos 100 anos da letra de Salles. Não tocará o hino oficial, de Pethion. 

“Já Salles era um típico morador de Salvador. O compositor foi João Antônio Wanderley, um maestro da policial militar. Foi a Banda da PM quem fez a música. Mas, infelizmente, Wanderley também morreu de desgosto, com o coração partido. A Banda da PM, sob sua regência, foi convidada para tocar na Itália, em comemoração aos mil anos de São Francisco de Assis. Na véspera da viagem, o governador da época cancelou a ida, alegando que seriam muitos gastos”, conta Fred, reforçando que o hino mais conhecido foi escolhido pelo povo. E isto basta.

“O povo não adotou e não obedeceu o oficial, solicitado pela igreja. Havia um ranço. Hoje este hino é cantado apenas na igreja, uma vez no ano. O povo adotou o grito de guerra de Salles que, na verdade, não comemora o Bonfim. É uma homenagem ao 2 de Julho. Contudo, Salles atribuiu ao Bonfim a intervenção pela vitória na Independência da Bahia, o que tornou um marco para esta relação com a Colina Sagrada”, completa. 

Diferente de Salles, o maestro João Antônio Wanderley teve seu nome lembrado na regravação do hino, em 1962, no álbum Panis et Circensis. Nas edições posteriores, a gravadora tirou o nome de Pethion, mantendo apenas Wanderley como autor. “Tem um outro aspecto interessante. A gravação mais tradicional do hino, feita por Caetano Veloso, também teve participação da Banda de Música da Polícia Militar da Bahia. Nossa banda é histórica, tocamos até na Guerra do Paraguai. Ela é de 1849. É a banda militar mais antiga no país. É uma instituição dentro da instituição”, disse o historiador e policial militar, tenente-coronel Marins. 

Curiosamente, o tema da Lavagem deste ano, que comemora os 100 anos do hino, se refere a composição de Salles, apesar de não ser o oficial da igreja. Na verdade, poucos fiéis que conhecem o outro hino sabem que ambos possuem a mesma idade. O padre Edson Menezes, reitor da Basílica do Senhor do Bonfim, afirma que o tema deste ano, de fato, se refere ao hino mais popular. “Todo ano temos um tema e motivação espiritual. Este ano, estamos comemorando os 100 anos da composição do hino ‘Glória ti, neste dia de glória’, que foi composto para comemorar, na época, os 100 anos da independência, mas que tem uma referência do Bonfim como condutor da vitória. Isso é lindo”, disse Edson.

O sacerdote prefere não criar polêmicas sobre os dois hinos. Para ele, ambos são importantes e lindos. “O hino oficial também tem uma letra linda. Fala sobre o início do povo brasileiro que conhecemos. ‘À sombra do teu madeiro, Sob um céu primaveril, nasce o povo brasileiro…’, olha só. Faz uma referência ao início de tudo, da Primeira Missa com o madeiro da cruz. Agora, claro, o hino popular caiu na graça do povo, né? Qualquer lugar que a gente chega com a imagem, o povo canta ‘Glória a ti’. É este que vamos reverenciar nesta Lavagem do Bonfim. Uma letra que nasceu no Dois de Julho, mas se tornou hino do Bonfim e de todos os baianos”, reforça o padre.

O padre também pede uma pequena modificação na letra. Como o hino de Salles faz uma referência aos 100 anos da Independência da Bahia, nada mais justo que atualizar o trecho ‘Glória a Ti, redentor, que há cem anos…” para duzentos anos.  “Já estou pedindo aos fiéis para cantar colocando 200 anos. Vai pegar”, completa Edson. Se der tempo, vale também lembrar e homenagear o autor da música mais imponente do estado, mas que morreu no anonimato. Viva o Bonfim! Viva Arthur de Salles!
 

Hino religioso
Letra: Pethion de Vilar  (Dr. Egas Moniz)
Música: Remígio Domeneck 

À sombra do teu madeiro, 
Sob um céu primaveril, 
Nasce o povo brasileiro, 
Cresce pujante o Brasil. 
De um dia sermos vencidos 
Não nos assalta o temor: 
Ao teu lado sempre unidos, 
Somos teu povo, Senhor! 
Salva, protege, alumia, 
Pelo sinal desta Cruz 
O coração da Bahia 
Que aos teus pés o Amor conduz! 
Volve os teus olhos divinos, 
Aos nossos males – oh sim! 
Ouve o clamor deste hinos, 
Nosso Senhor do Bonfim! 
Abrindo os sagrados braços, 
Descestes do teu altar, 
Para guiar nossos passos 
E nossos ferros quebrar! 
Da Bahia eterno amigo, 
Passando entre nós, 
Jesus Levas nossa alma contigo, 
Num grande abraço de luz. 
Do mundo na tempestade 
Seja o teu nome o zarel 
O escudo da Liberdade, 
A espada do ideal! 
Na peleja mais renhida 
Ninguém nos há de vencer: 
Quem teme a Deus nessa vida, 
Nada mais pode temer! 
 

Hino Cívico
Letra: Arthur de Salles
Música: João Antônio Wanderley

Glória a Ti neste dia de glória
Glória a Ti, redentor, que há cem anos
Nossos pais conduziste à vitória
Pelos mares e campos baianos

Dessa sagrada colina
Mansão da misericórdia
Dai-nos a graça divina
Da justiça e da concórdia

Dai-nos a graça divina
Da justiça e da concórdia

Glória a Ti nessa altura sagrada
És o eterno farol, és o guia
És, Senhor, sentinela avançada
És a guarda imortal da Bahia

Dessa sagrada colina
Mansão da misericórdia
Dai-nos a graça divina
Da justiça e da concórdia

Dai-nos a graça divina
Da justiça e da concórdia

Aos Teus pés, que nos deste o direito
Aos Teus pés, que nos deste a verdade
Canta e exulta num férvido preito
A alma em festa da Tua cidade

Dessa sagrada colina
Mansão da misericórdia
Dai-nos a graça divina
Da justiça e da concórdia

Dai-nos a graça divina
Da justiça e da concórdia
 

Entrevista com o padre Edson Menezes, Reitor da Basílica do Senhor do Bonfim

Imagem do Bonfim irá vai participar do 2 de Julho

Reitor da Basílica do Senhor do Bonfim, o padre Edson Menezes fala sobre as expectativas para a Lavagem do Bonfim, após dois anos de hiato por conta da pandemia. Ele diz que terá a procissão marítima e que está pedindo a participação da imagem na comemoração dos 200 anos da Independência da Bahia, em julho.

CORREIO – A pandemia deixou os baianos sem a Lavagem do Bonfim durante dois anos. Qual a expectativa para esta retomada?

Padre Edson – O Senhor do Bonfim é o padroeiro do coração dos baianos. A festa terá um caráter especial e próprio, pois depois desta retomada, penso que o povo está com sede de subir a ladeira da Colina e vivenciar toda aquela mística. Acredito que teremos um numero muito grande de pessoas na festa que comemora os 100 anos do hino popular ‘Glória a Ti’.

CORREIO – Como será a programação? Podemos esperar algumas novidades?

Padre Edson – Toda a novena foi preparada nesta perspectiva de retomada. A festa faz este caminho de oratório, as nove noites da novena é para preparar o dia da festa, que é no domingo, dia 15. Temos a programação especial, o retorno da lavagem no dia 12, como conhecemos. Dia 11 teremos uma programação especial, que será o translado da imagem do Bonfim, de barco, da ponta do Humaitá até a rampa do Mercado. De lá, conduziremos a imagem para a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia.

CORREIO – Isso foi feito em 2020. Virou tradição?

Padre Edson – Em 2020, comemoramos 275 anos da chegada da imagem do Senhor do Bonfim. Foi uma data jubilar e especial. Como a imagem chegou numa caravela de Portugal, eu tive essa ideia de realizar esse traslado a bordo. O povo gostou e, como dizem aqui na Bahia, o que acontece uma ou duas vezes vira tradição. Vamos dar continuidade e essa procissão marítima fará parte da programação da festa do Bonfim. Daremos uma volta na Penha, que foi onde a imagem ficou quando chegou à Bahia, vamos até Humaitá, passaremos pelo Porto [da Barra] e depois vamos até o cais

CORREIO – Este ano também teremos a imagem nos 200 anos da Independência da Bahia?

Padre Edson – Já estou providenciando isso. A imagem do Bonfim vai participar dos festejos ao 2 de Julho. Há 100 anos, na comemoração centenária, a imagem participou e queremos repetir.

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