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Enquanto a agulha arranha o disco

Até hoje não se sabe quem colocou aquele vinil de Woodstock para tocar na vitrola portátil com caixa em madeira e tampa de acrílico. Tudo que eles se lembram daquele domingo é que o som foi se expandindo e subindo em direção ao teto, enquanto seguiam esparramados, tarde adentro, no chão de tacos meio soltos, agarrados em almofadas coloridas, encolhidos. E havia um incenso aceso.

Naquela época, quando qualquer grupo de amigos se reunia em um quarto fechado, havia sempre um incenso aceso. O som que vinha daquele disco parecia se misturar à fumaça que se desprendia do incenso, ganhando corpo, volume, cheiro. E era tudo tão corpóreo que dava até vontade de tocar com as pontas dos dedos as notas, apalpar com as mãos o fraseio. É que ouvir música era uma experiência muito táctil.

Então se pensam hoje naquela tarde de janeiro, quando um deles colocou na vitrola o vinil de Woodstock, todos concordam que cada milímetro entre as quatro paredes daquele quarto parecia ter ficado impregnado pela música. Era uma sensação compartilhada, talvez um devaneio coletivo, de que todos os limites físicos daquele cômodo foram se abrindo e, lá no alto, enxergaram o Universo.

Era uma espécie muito rara e doida de universo, íntimo, e ele tremulava sobre suas cabeças enquanto a agulha arranhava o disco. Não voltariam a sentir, em muitos anos, aquela sensação de estar flutuando num quarto cheio de camas de solteiro, no apartamento dos amigos, onde os filhos eram muitos. Os adultos ficavam esquecidos no sofá da sala assistindo o capítulo final da novela das oito.

Esquecidos no sofá, nos intervalos do último capítulo, os adultos estranhavam o cheiro de patchuli que escapulia por baixo da porta fechada do quarto e a voz de Joe Cocker cantando a canção dos Beatles aos gritos. No trajeto da sala à cozinha, para beber um copo de água, pegavam-se indecisos entre checar a estranheza daquelas coisas ou improvisar um lanche rápido. A faca e o queijo nas mãos.

E havia uma janela que ia de um canto a outro do quarto e que dava para o mar. Todos concordavam também em relação a isso. E havia um poema de Ferreira Gullar, cujo título todos esqueciam em minutos, depois de finalmente recordar, ficando sempre na memória de cada um o mesmo trecho: “quando uma lancha deixa seu rastro de espumas no dorso da baía e as águas se agitam alegres por existirem”.

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