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Desvarios no calor da noite

Deve ser a noite mais quente do ano. Talvez até dos últimos anos. Uma sauna involuntária, com seu vapor morno que me envolve e entorpece. Escuto Cannonball Adderley e Bill Evans tocando magistralmente Waltz for Debby, enquanto aprecio a primeira taça de um bom branco sul-africano ainda não devidamente resfriado. A mente padece, retorcida pela exaustão feito uma toalha molhada. E o pior: não faço a menor ideia do que vou escrever.

Rubem Braga era um mestre em transformar a falta de assunto em observações preciosas sobre a vida: o canto de um pássaro, a chuva chicoteando a vidraça, qualquer banalidade se convertia em palavras, frases e por fim crônicas. Não disponho do talento do velho Braga e não há pássaros a cantar por perto, muito menos um temporal lá fora para abrandar o dia mais sufocante de todos os tempos. Salvador queima em brasa.

Gostaria de estar agora em Floripa, em frente à Lagoa da Conceição, jogando conversa fora com um velho amigo que não vejo há mais de 15 anos. Tenho enorme carinho por essa cidade, por sua beleza montanhosa e pelas boas lembranças de momentos vividos lá. Um deles justamente com esse amigo, com quem fiquei certa vez até a alta madrugada enchendo a cara de uísque e detonando maços de cigarro. Nos reunimos na varanda da pousada em que estava hospedado, enquanto minha mulher e minha filha ainda pequena dormiam no quarto.

Falamos muito de literatura. Eu glorificava Hemingway e ele, Thomas Mann. Eu apreciava os versos livres e sem amarras e ele defendia a importância da forma e até dos decassílabos. Falamos das nossas próprias aspirações. Ele já havia concebido Frankensteins, seu mais belo poema, e ambicionava escrever roteiros de cinema. Eu ainda cria que poderia dar forma a um romance ou ao menos publicar um livro. Éramos apenas dois jovens jornalistas latino-americanos sem dinheiro no banco e sem parentes importantes, mas com algum talento. Isso não mudou muito, com exceção da juventude, mas bem ou mal realizamos alguns desses sonhos.

Confiro no celular a temperatura deste início de noite em Floripa: 26 graus, só dois a menos que aqui. Ou seja: nem na beira da Lagoa encontraria o vento frio que tanto prezo. Talvez a fornalha que habito não se restrinja à velha Salvador, porta do Recôncavo e do semiárido, mas abarque todo o planeta, que caminha a passos largos rumo a um trágico aquecimento global, com enormes icebergs se descolando das geleiras e vagando incertos pelos oceanos.

Cidades serão tragadas que nem castelos de areia. Mas enquanto o Porto da Barra não for invadido por seguidos tsunamis, até se converter em nada além de mar, lembranças e escombros, continuarei indo ao fundo fazer companhia aos barcos e aos peixes. É o meu retiro espiritual, necessário encontro com Iemanjá para este ateu que viu milagres como eu.

Agora o vinho branco já resfriou e no som toca um CD de Oscar Peterson com Roy Hargrove e Ralph Moore, álbum que ocupa lugar privilegiado no meu coração musical. O jazz e seu infinito particular, me inspirando e me incentivando a continuar. Não sei para onde, nem sei para quê, como se flanasse em pensamento por uma Paris imaginária.

Às vezes, me pergunto por que fico aqui escrevendo. Seria uma necessidade imperiosa de me questionar e questionar o mundo à minha volta? Creio que não. Ou talvez sim. Rilke, em Cartas a um Jovem Poeta, aconselha o seu discípulo a investigar nos “recantos mais profundos da alma” qual o motivo que o fazia criar versos. E pede que confesse a si mesmo: “Morreria, se lhe fosse vedado escrever?”.

Eu não saberia dizer se morreria, caso me fosse vedado escrever estas crônicas desimportantes – ou mesmo alguns devaneios em versos e prosas que vez por outra desaguam do nada feito cascatas.

Bem, poderia viver da leitura, esta sim uma grande aventura, segundo Borges. Ou deixar as letras de vez e embarcar num navio rumo à África, como fez Rimbaud. Poderia até viver de brisa, como no poema de Bandeira. Mesmo nesta noite abrasadora.

Sei apenas que não conseguiria viver na solidão. Sou um bicho gregário, como o pato e o leão. Necessito do calor de outros corpos e da cumplicidade de outras almas. De me sentir humano e de saber que pertenço a uma espécie bela e imperfeita, que ergue e destrói coisas belas. Capaz de florescer e frutificar em versos, romances, canções, cidades, paixões, amizades, jazz e vinho. Evoé!

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