Um dos mais acertados vetos do presidente Lula – o que restabelece a saída temporária de presos do semiaberto – está sob a mira do Congresso Nacional, que se articula para derrubá-lo. Aprovada em 20 de março, a lei proibindo a chamada “saidinha” é mais uma daquelas panaceias populistas que em vez de resolver agudizam os problemas que fingem corrigir. Prática, diga-se, recorrente no Parlamento.
A nova lei anda para trás. Consegue ser mais retrógrada do que a de 1984, assinada pelo último presidente da ditadura, João Figueiredo, quando a “saidinha” foi estabelecida. O benefício vigora, portanto, há 40 anos.
Além de proibir a saidinha, os parlamentares – e esta parte Lula não vetou – reavivaram a obrigatoriedade do “exame criminológico” para a progressão de regime, critério suspenso em 2004 devido à incapacidade do Estado de formar e remunerar bancas com psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais para analisar individualmente o perfil de todos os presos do país. Ou seja, essa parte da lei já nasce fadada a não colar.
O recrudescimento das regras de execução penal, gestado no período Bolsonaro, quando a Câmara aprovou a proibição de qualquer saída de presos, inclusive para estudar e trabalhar, voltou à tona depois que um detento beneficiado com a saída de Natal matou a tiros o sargento Roger Dias, em Belo Horizonte. O assassinato foi o estopim para que o presidente do Senado, o mineiro Rodrigo Pacheco, desse celeridade à materia, engavetada em 2022. À época, faltou verificar se o criminoso em questão preenchia os diversos requisitos para a concessão de visita à família, entre eles o cumprimento de um sexto da pena e bom comportamento. Ou seja, se o problema era a lei ou a aplicação dela.
A morte do sargento Dias foi torpemente utilizada pelos parlamentares. Mesmo cientes de que a saidinha não faz nem cócegas na gravidade dos problemas de segurança pública que o país enfrenta, tentaram fazer a população crer que ela significava uma enorme ameaça. Mentiram, esconderam dados, ludibriaram as pessoas.
Vamos aos números. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil tem hoje 830 mil presos, 25% deles provisórios. No Natal de 2023, 52 mil receberam autorização para visitar suas famílias; 49 mil voltaram na data estipulada; 2,6 mil não regressaram – 4,5%. Se o Congresso derrubar o veto de Lula, 95,5% seriam “punidos por bom comportamento”.
Ao que parece, esses 4,5% faltantes representam perigo maior do que o crime organizado, as milícias e as armas compradas legalmente por CACs criminosos, para os quais suas excelências não dedicam tanta atenção e empenho. Não se vê ainda qualquer esforço dos parlamentares para coibir o absurdo de as cadeias abrigarem 210 mil presos provisórios que ainda não foram julgados. Mas o problema é saidinha.
Segurança pública sempre foi um debate político e não há mal nisso. Contaminou-se com a polarização, que o tornou menos produtivo e mais agressivo. De um lado a direita pró-armas para qualquer cidadão acusa a esquerda de proteger mais os direitos humanos dos criminosos do que das vítimas. De outro, a esquerda se apresenta fraca diante da escalada da criminalidade, sem políticas capazes de anular a falaciosa pregação de que “bandido bom é bandido morto”. Tão frágil que alguns dos seus chegaram a sugerir que Lula nada vetasse para não bater de frente com o Congresso.
Nesse ponto, cabe dizer que derrubada de vetos faz parte do jogo. O Parlamento aprova, o presidente veta e o Parlamento, se assim entender, derruba o veto. Dessa forma, cada campo deixa sua posição política clara. A discordância de ideias, ponto de honra da democracia, delimita visões diferentes e não deve ser inibida por gerar conflito. Lula fez um único veto na lei a partir da visão humanitária inscrita na Constituição brasileira. Não se acovardou diante da possível derrota que irá sofrer. Ponto para ele.
Quanto à saidinha, seria conveniente que os parlamentares debatessem o tema com os governadores de seus estados. Se o argumento de reinserção na sociedade é pouco para aqueles que enxergam as cadeias como vingança, talvez eles se convençam de que suspender benefícios incorporados há décadas pode ser o estopim para explodir um sistema carcerário para lá de precário e infernal. Esse sim, um tema que mereceria dedicação absoluta de suas excelências.
Mary Zaidan é jornalista