O desfile do Afoxé Filhos de Gandhy é dos homens, mas a tradição não seria a mesma se não houvesse a participação das mulheres. Eram elas que realizavam os últimos ajustes nos trajes e turbantes antes da saída do bloco da sede, no Pelourinho, em direção ao Campo Grande, no início da tarde de sexta-feira (19). Antes que fossem para a rua mandar sua mensagem de paz, os homens realizaram o padê, rito típico de religiões de matriz africana em que se oferece alimentos e bebida à divindades. Com a benção de Exu, o afoxé pôde enfim seguir seu percurso ao som do ijexá.
Apesar da tradição de 74 anos e relação com a religiosidade, os Filhos de Gandhy não deixam de se reinventar. Seja para causar polêmica, como foi a fantasia com tons de dourado em 2019, ou para dar noção da magnitude do grupo, como a pomba gigante um ano antes. Dessa vez, a participação de indígenas foi o grande destaque do primeiro dia de desfile.
Artesãs fazem os últimos ajustes nos turbantes dos homens que vão desfilar (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) |
Em referência ao tema “Caboclos de Pena e Encourado”, os indígenas realizaram um ritual antes do bloco seguir seu caminho. Em seguida, o som dos instrumentos e do ijexá dos Filhos de Gandhy se sobrepuseram e o tapete branco começou a se deslocar com beleza em direção à Praça Castro Alves. O momento ganhou contornos ainda mais especiais com o encontro do sol com o mar.
FOTOS: Veja como foi o desfile dos Filhos de Gandhy no 4º dia de Carnaval
O traje deste ano traz os tradicionais tons de azul escuro na frente e claro atrás, além do turbante, que cada um tem a liberdade para incrementar como quiser. Na roupa, há detalhes em amarelo e a inscrição “Salve a Amazônia”. Nos pés, sandálias brancas com o símbolo do grupo. A expectativa é que cinco mil homens desfilem.
Indígenas fazem ritual antes da saída do bloco (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) |
Quem elogiou o tema foi o governador Jerônimo Rodrigues (PT), que esteve ao lado do vice, Geraldo Jr. (MDB). Os dois estavam devidamente trajados e participaram no desfile. Jerônimo, que é indígena, afirmou que a homenagem ao povo é importante e reforçou que dará incentivos para que os Filhos de Gandhy e outros blocos afros, que enfrentam dificuldades financeiras, se recuperem.
“As pessoas reconhecem a conexão física e espiritual, mas nos entregam uma responsabilidade. A minha presença hoje no desfile é porque acredito em políticas de cultura como essa”, afirmou o governador, que já havia desfilado suas vezes como Gandhy.
Entre os integrantes, os que participam há anos, curiosos e novatos. O médico Marcos Menezes, 55, era um dos que buscava entender no que tinha se metido, apesar de achar tudo majestoso. O paulista comprou uma casa no Santo Antônio Além do Carmo em meio à pandemia, quando veio realizar um trabalho social.
Meio que para se integrar de vez à terra que pretende chamar de sua quando a casa for reformada, decidiu sair nos Filhos de Gandhy pela primeira vez. Segundo ele, a realização de um sonho para quem sempre acompanhou o afoxé a distância. O contraste entre o masculino e o traje utilizado é um dos fatores que chamou a sua atenção para o bloco.
“Eu acho muito interessante o contraste entre o masculino e os adereços utilizados. É uma coisa diferente”, analisou enquanto esperava o bloco sentado nas escadarias da Fundação Jorge Amado. “Salvador é diferente de tudo”, falou inspirado.
O padê é realizado como forma de pedido de proteção a Exu (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) |
Outro que deixava a emoção estampada no rosto era o aposentado Renato Cordeiro, 74. Há 19 anos ele desfila nos Filhos de Gandhy e conta, com orgulho, que guarda todos os trajes utilizados desde o início da relação com o bloco. “Minha mulher fica até aborrecida porque metade do armário é de fantasia”, contou.
Apesar de a saudade dos integrantes para voltar às ruas ter sido intensa, o movimento no domingo (19) frustrou as expectativas de quem comprou os trajes para revender. Na sede do afoxé, o passaporte para o primeiro dia, segunda (20) e terça-feira (21), custava R$700 e R$600 para associados. No Pelourinho, um vendedor cobrava R$200 e mesmo assim não conseguia desencalhar. “Trabalho com isso há 20 anos e nunca vi tão ruim”, falou.
Se para poucos o clima era de decepção, a alegria falava mais alto. Jadson Costa, 39, era só sorrisos. Pela primeira vez no desfile, levava o filho Arthur, 9, e a esposa para acompanhar ao lado. “Estamos sempre em busca de novas experiências no Carnaval e sabemos que aqui tem um clima muito tranquilo, por isso decidimos vir”, contou o técnico de enfermagem.
A esposa chegou a brincar que estava lá para ficar de olho no marido, em referência a famosa troca de colares dos Filhos de Gandhy por beijos no Carnaval. Em sua defesa, os próprios integrantes do afoxé se diferenciam entre si. Dizem que uma parte sai em busca da bagunça e outra, da tradição.
De fato, é interessante perceber a movimentação do grupo logo no início do desfile. Alguns já se afastam da multidão, ficam pelo Pelourinho procurando conversa e bebendo cerveja. Se chegar um desavisado qualquer, pode até ficar confuso se o bloco já saiu ou não, por conta de tanta gente espalhada. Mas a maioria seguiu firme no ritual e o clima de paz era tanto que houve até quem tranquilizasse uma turista. “Não precisa guardar o celular que aqui ninguém rouba, somos Gandhy”, reforçou. Ela preferiu não arriscar.
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*Com orientação de Fernanda Varela.