InícioNotíciasPolicialBens dos mortos: acervo de muitos artistas brasileiros está ameaçado

Bens dos mortos: acervo de muitos artistas brasileiros está ameaçado

Quando um grande artista morre, muita coisa morre com ele. Sua inventividade, personalidade e, às vezes, toda a sua obra. Sim, isso mesmo. Obras de arte são bens transmitidos por herança, como quaisquer outros. E a depender de quem recebe um acervo de um artista – por mais relevante que seja -, ele pode ser vendido ou engavetado sem que o mundo jamais possa usufruir de suas obras. O filho Gabriel, 17 anos, é por lei o único herdeiro do acervo de Gal Costa, recém-falecida. Mas Wilma Petrillo, sua viúva e ex-sócia, é o centro das decisões sobre a memória da cantora. Nem que isso contrarie os desejos de amigos, familiares e da própria mulher. Gal havia comprado um jazigo ao lado da mãe, na zona sul do Rio de Janeiro, mas a viúva resolveu sepultá-la em São Paulo. Agora a questão seguinte é saber: o que Wilma fará com o seu acervo?

O acervo de alguém com a relevância internacional de Gal Costa é considerado um bem imaterial. É algo incalculável. Não se sabe, para além do extraordinário espólio musical, o que mais a cantora deixou. Geralmente permanecem diversos tipos de obras de arte, cartas, fotografias raras, materiais biográficos que compõem um acervo. Mas diante do episódio do seu sepultamento, o destino da obra de Gal é incerto. As perguntas pululam, sem sinal de resposta. Será respeitado o desejo da cantora com relação ao seu acervo? Qual era esse desejo e como saberemos? O que consta nesse acervo? As vontades post-mortem de Gal Costa serão novamente contrariadas por sua viúva, assim como foi seu funeral?

Quem herda um legado como o da cantora nem sempre tem consciência da sua importância para o mundo. Ou tem, mas não se importa. E quando se importa, geralmente não reúne condições financeiras suficientes para manter o acervo. Serigrafias, pinturas, esculturas, fotografias precisam de condições especiais para não sofrer danos. Isso porque maresia, umidade e até luz em excesso podem prejudicar um trabalho artístico. A conservação de obras de arte é uma verdadeira arte. E ela é bem cara.

Quando Paloma Amado resolveu colocar em leilão mais de 500 peças herdadas de seus pais – os célebres escritores Jorge Amado e Zélia Gattai -, pretendia com isso restaurar parte do acervo prejudicado da família. Mas recebeu críticas. No leilão, havia obras dos prestigiados Carybé, Floriano Teixeira, Anita Malfatti e até de Picasso. A escritora se queixava dos julgamentos alheios, lembrando que as obras eram propriedade dos herdeiros. Mas esse era apenas um terço do acervo familiar, e o valor arrecadado serviria a duas boas causas: ajudar a Fundação Casa de Jorge Amado e principalmente, reformar a Casa do Rio Vermelho, que em 2008, estava arruinada.

Localizada na Rua Alagoinhas, a casa era a residência dos pais de Paloma, repleto de móveis, fotografias e utensílios do casal, além das cinzas de Jorge Amado e Zélia Gattai. Uma morada preciosa, com objetos preciosos, que o tempo estava demolindo. Felizmente, a Prefeitura de Salvador restaurou em 2014 toda a Casa do Rio Vermelho, tornando-a até hoje um famoso memorial aberto à visitação. Mas apesar de ser uma casa com status de museu – algo que parece bem imponente -, seus herdeiros fizeram questão de que ela mantivesse a simplicidade do escritor e sua mulher. “Não era para fazer uma casa de veneração a uma pessoa que está num pedestal. Não! A gente anda pela casa e o papai está andando por aqui”, define Paloma.

Algo semelhante ocorreu com os herdeiros do maior arquiteto do país, Oscar Niemeyer. As obras eram tantas, que os familiares não conseguiam mais mantê-las, embora em bom estado de conservação. A família mineira recebeu o acervo ainda na década de 1980, e grande parte dele foi destinado a instituições. Responsável pelo Congresso Nacional, a Marquês de Sapucaí e o Conjunto Moderno da Pampulha, por exemplo, o arquiteto de fama internacional era um colecionador de arte por excelência. O acervo inclui trabalhos dele mesmo – especialistas dizem que era um exímio artista plástico – e do pintor Cândido Portinari. A solução para manter a obra foi vendê-la em leilões. O primeiro, realizado por sua única filha, a galerista Anna Maria Niemeyer, ocorreu em 2012. As coleções foram vendidas como um todo – e não separadamente, para que não se perdesse a identidade delas. Outro leilão foi feito ano passado, tempos após a morte de Anna Maria. Mas a identidade dos familiares não foi revelada. Para não sofrer críticas, os novos responsáveis pelo acervo de Niemeyer preferiram se manter no anonimato diante da imprensa.

Felizmente, boa parte do espólio de Niemeyer encontrou morada em um museu e uma fundação que levam seu nome, mas alguns não dispõem da mesma facilidade. A esposa do dramaturgo e pesquisador de teatro Augusto Boal, falecido em 2009, enfrentou com seu acervo negativas de inúmeras instituições durante anos – assim como a obra do diretor, cenógrafo e crítico de teatro Martim Gonçalves, morto em 1973. Mas ao contrário dos demais casos relatados aqui, a diretora do Instituto Martim Gonçalves, Jussilene Santana, não era uma herdeira familiar. Era uma atriz, jornalista e pesquisadora que se apaixonou pela causa de Martim e pela preservação de documentos sobre teatro. Santana fundou o Instituto em 2017, mas até hoje faltam recursos básicos e uma sede física.

“O principal desafio para se manter um acervo histórico no Brasil, seja o do Instituto Martim Gonçalves ou outros mais gerais e robustos, é o problema de mentalidade. A sociedade não cobra das instituições oficiais ou não quer se responsabilizar por sua parte”, sintetiza Santana. A solução para essas duas mulheres “herdeiras” teatrais – de Gonçalves e Boal – foi tentar conservar ao máximo o acervo dentro de suas próprias casas. Mas é desesperador pensar que o Brasil pode ter algum documento ou obra teatral dessas danificadas no futuro. Elas recontam uma parte importante da história do país, como lembra Santana.

O sonho das famílias que vendem seus acervos, em geral, é que sejam adquiridos por instituições nacionais sérias e respeitadas no assunto. Algumas delas são bancos, institutos, fundações e até universidades – cada vez mais sem recursos. Enquanto a Universidade de Nova York tem o privilégio até de adquirir acervos de estrangeiros, a de São Paulo (USP) tem recusado obras do próprio país por falta de recursos. Isso deixa claro o quanto nações europeias, norte-americanas infelizmente investem mais em arte do que o Brasil e a América Latina.

No Brasil, o risco de perda de legados artísticos é grande. Segundo a pesquisadora Jussilene Santana, um acervo privado tende a desaparecer durante apenas uma geração. “O mecanismo é o seguinte: a própria pessoa reúne uma documentação. Com sua partida, essa massa documental tende a ser transferida para um parente (que nem sempre reconhece a importância de cada material que recebe) ou é mantida de forma voluntária por um aluno dileto. Após a partida desses, a documentação ‘se despersonaliza’, e é aí que surge a tremenda importância das instituições, porque não é uma questão pessoal. Guardar a memória não é um problema familiar. É uma questão nacional!”, brada Santana.

Outra forma de perda dos acervos é quando instituições do exterior os adquirem, e o país de origem do artista perde o acesso à sua obra para sempre. Infelizmente, isso é algo corriqueiro na América Latina, segundo a viúva de Augusto Boal. A própria Cecília acabou recebendo da Universidade de Nova York uma proposta para adquirir o espólio de Boal. Era obviamente tentador, mas ela negou o convite para que a obra do marido permanecesse no país. O amor à nação e sua identidade falaram mais alto que o dinheiro.

Mas às vezes acontece o oposto. O acervo de um artista se torna tão somente um meio dos herdeiros ganharem a vida. Os familiares de Oscar Niemeyer, infelizmente, frequentam hoje os tribunais e páginas dos jornais em brigas intermináveis pelo que resta do seu espólio. Durante décadas, viúva, filha, netos e bisnetos foram ricamente sustentados por Niemeyer até sua morte, em 2012. Hoje o acervo e os imóveis foram quase todos vendidos. Sabe-se que sobraram croquis, desenhos de projetos arquitetônicos, que estão agora sendo disputados na justiça.

Felizmente, há ainda instituições nas quais se pode disfrutar da genialidade de um Niemeyer. O bom espectador paga o ingresso do museu, mas com a consciência de que obras assim não têm preço.

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