“A carne mais barata do mercado é a carne negra/ Que vai de graça pro presídio/ E para debaixo do plástico/ E vai de graça pro subemprego/ E pros hospitais psiquiátricos”. Imortalizada na voz de Elza Soares, a canção “A Carne” é uma triste realidade do povo brasileiro. E, em meio a esse problema, uma chaga se mantém aberta: a violência policial. O tema tem sido recorrente em protestos e denúncias ao longo das últimas décadas no Brasil — e na Bahia. Casos emblemáticos, muitas vezes marcados por abusos de poder, seguem ecoando nas ruas e nas memórias da sociedade baiana. Esses episódios trágicos revelam um padrão de violência que ameaça a vida dos baianos.
Nesta reportagem, revisitamos alguns momentos que definiram a relação entre a polícia e as comunidades, levantando questões sobre a impunidade, os direitos humanos e a busca por justiça em um estado marcado pela desigualdade.
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A madrugada de 1º de março de 2020 ficou marcada por gritos e silêncio na Gamboa de Baixo, comunidade periférica de Salvador. Enquanto a vida pulsava na cidade, Alexandre Santos dos Reis, de 20 anos, Cléverson Guimarães Cruz, de 22, e Patrick Sousa Sapucaia, de apenas 16, celebravam em um bar local.
O brilho das luzes festivas se apagou para os três jovens quando foram retirados à força por agentes do Batalhão de Rondas Especiais da Polícia Militar da Bahia (Rondesp). Poucas horas depois, seus corpos seriam encontrados sem vida em uma casa abandonada.
Hoje, quatro anos depois, a dor ainda ecoa pelas escadarias da comunidade. Na época, os moradores denunciaram que os policiais chegaram atirando e lançando gás lacrimogêneo, transformando a madrugada carnavalesca em uma noite de terror. A versão oficial da PM dizia que a ação foi uma resposta a uma ocorrência de sequestro, e que os jovens, supostamente armados, haviam resistido. Porém, as investigações desmontaram essa narrativa.
Os laudos periciais e as simulações realizadas mostraram que as armas de fogo apresentadas pelos policiais haviam sido plantadas no cenário do crime. Testemunhas relataram que, após as execuções, os PMs usaram vassouras, baldes e água cedida por moradores para lavar as poças de sangue que manchavam as escadarias. Mais tarde, os corpos de Alexandre, Cléverson e Patrick foram retirados da cena do crime, enrolados em lençóis e levados ao Hospital Geral do Estado (HGE) para sustentar a falsa versão de que teriam sido socorridos após um confronto.
Para Wagner Moreira, coordenador do IDEAS Assessoria Popular, que oferece suporte jurídico às famílias das vítimas, a denúncia do Ministério Público é um marco. “A tentativa de responsabilizar os policiais revela um esforço do MP para enfrentar a crise na segurança pública na Bahia, especialmente em casos emblemáticos como este”, afirmou Wagner.
Em novembro de 2023, três dos quatro policiais envolvidos foram denunciados por homicídio qualificado cometido por motivo torpe. Eles aguardam a decisão judicial que poderá levá-los a júri popular. Na mesma ocasião, a Justiça determinou o afastamento dos policiais por 180 dias, além da proibição de acesso à Gamboa e de contato com testemunhas e familiares. Contudo, relatos de moradores sugerem que os PMs continuaram frequentando a área, perpetuando o clima de medo.
Em julho de 2024, o Ministério Público da Bahia (MP-BA) acusou formalmente quatro policiais militares por crime de fraude processual. Eles foram denunciados por alterar a cena do crime.
CABULA
Na madrugada do dia 6 de fevereiro de 2015, as vielas da Vila Moisés, no bairro do Cabula, em Salvador, foram testemunhas de uma tragédia que marcou para sempre a história da cidade. Doze jovens foram mortos durante uma operação das Rondas Especiais da Polícia Militar (Rondesp). As vítimas tinham idades entre 16 e 27 anos. O caso, que ficou conhecido como “Chacina do Cabula”, levantou questões sobre o uso excessivo da força policial, as desigualdades sociais e as feridas abertas do racismo estrutural.
De acordo com a versão inicial apresentada pela Secretaria de Segurança Pública, os policiais estavam respondendo a uma informação de que um grupo planejava assaltar um banco na região. Ao chegarem no local, teriam sido recebidos a tiros por cerca de 30 suspeitos. Em contrapartida, investigações conduzidas pelo Ministério Público da Bahia (MP-BA) trouxeram à tona uma narrativa bem diferente: o crime teria sido premeditado pelos policiais como uma resposta violenta ao tráfico de drogas e em retaliação à morte de dois jovens ocorrida semanas antes, em 17 de janeiro de 2015, após uma incursão policial no bairro.
As evidências coletadas durante o inquérito sugerem que houve uma execução planejada. Dos 12 mortos, apenas quatro apresentavam vestígios de pólvora nas mãos. Laudos médicos revelaram que muitos foram atingidos por tiros disparados de cima para baixo, à queima-roupa. Alguns projéteis atravessaram a cabeça das vítimas, indicando uma abordagem de curta distância. Ao todo, as vítimas e os quatro sobreviventes receberam impressionantes 88 tiros.
As vidas ceifadas naquela noite incluíram os jovens Evson Pereira Dos Santos (27); Ricardo Vilas Boas Silva (27); Jeferson Pereira dos Santos (22); João Luís Pereira Rodrigues (21); Adriano de Souza Guimarães (21); Vitor Amorim de Araújo (19); Agenor Vitalino dos Santos Neto (19); Bruno Pires Nascimento (19); Tiago Gomes das Virgens (18); Natanael de Jesus Costa (17); Rodrigo Martins de Oliveira (17); e Caique Bastos dos Santos (16).
Quatro sobreviventes deram entrada no Hospital Roberto Santos naquela madrugada: Nilson Santana da Conceição (22); Luís Alberto de Jesus Filho (28); Luan Lucas Vieira de Oliveira (20); Arão de Paula Santos (23).
A denúncia foi inicialmente aceita pelo juiz Vilebaldo José de Freitas Pereira, mas, devido às férias do magistrado, o caso foi transferido para a juíza Marivalda Almeida Moutinho. Em julho de 2015, apenas cinco meses após o crime, Marivalda absolveu sumariamente os nove policiais acusados. Ela justificou sua decisão como uma tentativa de dar “satisfação à sociedade”, mas a decisão causou indignação e foi amplamente contestada.
Três anos depois, em setembro de 2018, a sentença foi anulada pela 1ª Turma da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça da Bahia, que acolheu um recurso do MP-BA. O processo, então, ganhou novos contornos quando a própria juíza Marivalda foi afastada do cargo, acusada de participação em um esquema criminoso no âmbito da Operação Faroeste, envolvendo venda de sentenças judiciais.
A falta de confiança no sistema judicial baiano levou o procurador-geral da República da época, Rodrigo Janot, a pedir a federalização do caso. Havia preocupações com a neutralidade das investigações, agravadas por ameaças feitas ao promotor de justiça que conduzia o caso. A questão se tornou um símbolo da luta por justiça e transparência em um estado marcado por históricos de violência policial.
TUCANO
Pedro Henrique era um homem de presença marcante. Negro, ativista pelos Direitos Humanos, tatuador, seguidor da cultura rastafári e defensor da legalização da maconha, ele levava em seus dreadlocks não apenas um estilo, mas uma declaração de identidade e resistência. Sua vida, interrompida em 2018 por um crime brutal, tornou-se um símbolo da luta contra o preconceito e a violência policial no interior da Bahia.
Em 2012, Pedro mudou-se para Tucano, uma pequena cidade com pouco mais de 48 mil habitantes. Apesar de frequentar o lugar devido a laços familiares, ele logo se tornou alvo de abordagens policiais constantes. Para seu irmão, Davi Santos Cruz Souza, o preconceito em relação à aparência de Pedro foi o gatilho para a perseguição.
Ainda naquele ano, Pedro sofreu agressões durante uma abordagem policial. Ele reagiu da maneira que sabia: denunciou o ocorrido ao Ministério Público da Bahia (MP-BA) e utilizou suas redes sociais para expor a violência. Mais do que isso, fundou a Caminhada da Paz, um ato em defesa dos Direitos Humanos e contra os abusos policiais, que, cinco anos após sua morte, continua sendo realizado anualmente em Tucano.
Entre 2012 e 2018, Pedro Henrique registrou ao menos cinco denúncias contra policiais militares, incluindo Sidiney Santana e Bruno Montino, que mais tarde seriam acusados de participar de seu assassinato.
Em 5 de maio de 2017, Pedro relatou ter sido praticamente despido em via pública para que suas tatuagens fossem examinadas pelos PMs. Em 14 de maio de 2018, ele precisou buscar atendimento médico após ser agredido durante uma abordagem. Menos de dez dias depois, em 24 de maio, ele e sua namorada foram abordados de forma truculenta ao voltarem do mercado. Nessa ocasião, Pedro afirmou que Sidiney mexeu em seus bolsos, quebrou seu celular, deu-lhe tapas e socos e, exibindo sua arma, desafiou: “Vá tomar suas providências porque você tem seu advogado e eu tenho o meu”.
Na noite do crime, em 2018, a casa do pai de Pedro, José Aguiar de Souza, foi invadida por três homens armados. Sob ameaça, ele foi obrigado a levar os assassinos até a residência do filho.
A invasão foi rápida e brutal. Pedro Henrique foi executado à queima-roupa, enquanto sua companheira estava dentro da casa. Ela ouviu os tiros, mas optou por não falar sobre o caso publicamente, temendo represálias. Contudo, em depoimento à polícia, identificou os três autores do crime como Sidiney Santana, Bruno Montino e José Carlos Dias. Apesar de estarem encapuzados, ela os reconheceu pelas vozes e características físicas.
A Polícia Civil concluiu o inquérito e indiciou os três policiais militares pelo homicídio. O trabalho foi realizado em conjunto com a Corregedoria da Secretaria de Segurança Pública, e o caso agora está sob responsabilidade do MP-BA. Apesar de o Departamento de Polícia Técnica (DPT) ter concluído todos os laudos periciais, o Ministério Público aguarda os resultados para dar prosseguimento ao processo.
FEIRA DE SANTANA
Na noite de um dia comum em Feira de Santana, o que parecia ser uma brincadeira entre adolescentes resultou em uma tragédia irreversível. Matheus dos Santos Souza, de apenas 14 anos, morreu após ser baleado enquanto estava na garupa de uma motocicleta. O caso chocou a população e levantou questionamentos sobre a violência policial e a vulnerabilidade juvenil.
De acordo com relatos de moradores e vídeos que circulam nas redes sociais, Matheus e um amigo estavam simulando uma situação de assalto, aproximando-se de dois jovens que vestiam uniformes escolares. A “brincadeira” foi interrompida pela chegada de uma viatura da Rondesp Leste, que avistou os adolescentes e interpretou a cena como uma tentativa de roubo.
Os policiais seguiram os jovens e, em uma sequência de eventos ainda sob investigação, dispararam contra a motocicleta. Os tiros atingiram Matheus, que não resistiu aos ferimentos. O amigo que conduzia a moto também foi atingido, mas sobreviveu e está sob cuidados médicos.
A Polícia Militar divulgou uma nota oficial expressando pesar pelo ocorrido e informando que os quatro policiais envolvidos foram afastados de suas funções operacionais até a conclusão do Inquérito Policial Militar (IPM).
“A PM lamenta profundamente as circunstâncias do ocorrido e informa que o Comando de Policiamento da Região Leste (CPRL) afastou das atividades operacionais os quatro policiais militares integrantes da guarnição até a conclusão do Inquérito Policial Militar (IPM), instaurado imediatamente após o fato”, afirmou a corporação em nota oficial.
LAURO DE FREITAS
Na manhã silenciosa de um dia comum no bairro do Portão, em Lauro de Freitas, a rotina foi abruptamente interrompida por tiros que ecoaram na localidade conhecida como Vila Nova de Portão. Givanildo Silva, um marceneiro de 36 anos, tombou ao chão, morto em uma ação policial que se transformou em mais um caso controverso envolvendo a Polícia Militar.
Em nota, a Polícia Militar afirmou que, durante rondas na região, os policiais avistaram um grupo de homens armados e houve um confronto. Segundo o relato dos agentes, ao final da suposta troca de tiros, Givanildo foi encontrado caído no chão. Ele foi socorrido e levado ao Hospital Menandro de Faria, mas não resistiu aos ferimentos.
Ainda de acordo com a PM, uma pistola calibre .40, sete munições, 34 pinos de cocaína e 79 trouxas de maconha teriam sido encontrados com Givanildo. Essa narrativa, no entanto, é fortemente contestada pela família, amigos e testemunhas.
Para os moradores da região e parentes de Givanildo, a história contada pelos policiais não condiz com os fatos. Testemunhas afirmaram que os policiais chegaram atirando sem qualquer aviso ou confronto prévio. “Ele era trabalhador, não tinha nada a ver com o que estão dizendo. Era um homem honesto”, declarou um amigo próximo da vítima.
A revolta se transformou em protestos. Dois atos já foram realizados no bairro do Portão, com faixas e gritos por justiça. Os manifestantes exigem que os policiais envolvidos sejam responsabilizados e que a Polícia Militar se retrate pelas acusações contra o marceneiro.