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Como fica a mãe nessa história?

“…(a mulher) nunca é dona de si. Seu ser se divide entre o que é realmente e a imagem que faz de si. Uma imagem que lhe foi impressa por família, classe, escola, amigas, religião e amante. Sua feminidade nunca se expressa, porque se manifesta por meio de formas inventadas pelo homem”, escreveu Octávio Paz, em O labirinto da Solidão e Post Scriptum.

Ao longo dos séculos, a figura materna se confundiu com a da Virgem Maria. Ela era – ou deveria ser – virtuosa, dedicada, assexuada, incansável e sem defeitos. O lar era o refúgio, onde a mãe reinava, paria, mandava, fiava, tecia, escrevia cartas, fazia doces e olhava os filhos. Sem muita leitura nem noções de puericultura, ela os mandava para as casas das camponesas, na França, ou mantinha-os nas ‘nurseries’ inglesas e americanas, ensinando-lhes as primeiras letras ou contratando-lhes preceptores. 

O papel da mãe era manter o lar abastecido e em paz, enquanto o marido cuidava dos negócios. Suas frustrações ela as resolvia jogando ou conversando sobre vestidos. Enquanto isso, elaborava cardápios, fiscalizava as compras e empregados, dava a bênção às crianças antes de dormir. Às vezes lia para elas.

Nas casas amplas e confortáveis, as refeições eram regulares e bem servidas. Ela não precisava checar a lavanderia nem arrumar os quartos, havia criados para isso. Raramente tomava conhecimento da vida dos neo-pobres da periferia, que começavam a demandar as cidades, abandonando o sossego do campo. Filhos nasciam e morriam sem tempo para apegos e carícias. Começaram a surgir brinquedos e livros especiais para as crianças. Para ela, as páginas dos folhetins e cadernos femininos, com receitas e poemas. Enquanto ela lia e bordava, as amas aleitavam as crias da casa.

No fim do século XVIII, apareceram os obstetras dotados de fórce ps e da mágica anestesia, ao mesmo tempo em que sumiam as parteiras. O processo hospitalar de parir trouxe uma nova e fatal doença, a febre puerperal e a septicemia. Logo surgiu a psiquiatria para tratar de suas histerias, neurastenias e enxaquecas. Na fase pós-industrial, ela foi trabalhar fora e passou a ser alvo da indústria do leite em pó e de mil e um artigos para as crianças, além de livros e teorias sobre educação infantil.

Escolas e jardins de infância prosperavam, juntamente com a indústria da mamadeira. Foi decretado que ela era incapaz de cuidar da criança sem a ajuda de especialistas. Charlotte Perkins Gilman, em “The Yellow Paper”, foi das primeiras vozes a alertar para a depressão pós-parto e o isolamento materno.

As mães do século XIX são puro instinto materno: caseiras, os filhos nos joelhos, rezam com eles ao anjo-da-guarda. Foi então que surgiu a figura da ‘nanny’ inglesa, severa e especializada em higiene, principalmente quanto ao funcionamento intestinal. As crianças eram tratadas com rigor e crueldade, especialmente os filhos dos pobres, que entravam cedo no mercado de trabalho. A jornada era de até 16 horas por dia em minas, fábricas de tecidos, indústria do tabaco e em casas de família. Os que mais sofriam eram os filhos de mães solteiras, desprezadas pela sociedade. Floresciam as ‘fábricas de anjos’. Têm início a educação para a saúde, o controle sanitário do leite e a supervisão médica de rotina. Casos de abusos e crueldade para com a criança eram tratados pela Sociedade Protetora dos Animais.

A ascensão da ciência na década de 30 diminuiu o valor do ‘instinto materno’. As mães passaram a usar termos como vitaminas, proteínas, bactérias. Amamentar passou a ser regulado pelo relógio, fazer o bebê arrotar tornou-se uma arte, a vida ao ar livre tornou-se matéria complexa. Crianças eram pesadas e medidas em casa, e também lhe tiravam a temperatura duas vezes ao dia, como relembra Sartre com desgosto. Muitas dessas atitudes eram pedantes, supérfluas e até patéticas (ainda são…). A maternidade “científica” exigia noções de higiene, sanitarismo e nutrologia. Tudo devia ter uma “técnica”, mesmo vaga e sem fundamento razoável.

A “nova mulher” do século XX passou a frequentar a universidade ou a trabalhar fora, como professora, enfermeira, assistente social, vendedora. Mas os especialistas a enchiam de culpa equiparando a saúde da mulher ao propósito de ter filhos. Uma mulher tinha que casar e parir. Os quais não mais deixariam de ser objeto de estudos multidisciplinares. O advento da pílula – e a difusão dos métodos anticoncepcionais – trouxe a possibilidade de ter ou não filhos ou de determinar o tamanho da prole. Alguns países taxam o segundo filho ou promovem o abortamento de fetos femininos. Ainda se morre de parto e suas complicações. A cesárea assumiu o cenário e lutar pelo parto normal tornou-se uma bandeira de ativismo. Amamentar é outra missão que algumas mulheres retomaram para si. Trocam informações e se fortalecem em listas de discussão e comunidades virtuais, pois a família, a sociedade e o sistema de saúde desestimulam a prática.

Hoje, há livros de puericultura e psicopedagogia aos montes, inclusive contraditórios entre si. A mãe não tem como processar tanta informação, sob pena de desmoronar debaixo de tantos apelos e ordens dirigidos a ela, mãe, e a ela, mulher. Ela tem que ser poderosa, criativa e turbinada. Antenada, moderna e descolada. Inteligente, esperta e disciplinada. Sem perder a elegância jamais. Tem ainda que vencer a balança, as estrias, os raios solares e os radicais livres. E ser competente em nutrologia infantil, metodologia, expressão corporal, futurologia, filosofia das religiões, reflexologia e terapia ocupacional. Deve ser expert em culinária, saber escolher os melhores alimentos, contar histórias, sacar de matemática e geografia. Dirigir, ir a reuniões, escrever artigos, elaborar gráficos, fazer psicoterapia.

Além disso, ela precisa ler as últimas revistas e escolher os novos brinquedos que vão estimular SEU filho. Aliás, ela deve ter um curso de ‘libras’, a linguagem dos sinais. Seus assuntos abarcam fraldas, “terrible two”, papinhas, intolerância à lactose. Mesmo que seja uma fiscalizadora regular do cocô – e intérprete diuturna dos vários tipos de choro -, sua competência de mãe estará sempre sob suspeita. Não só é a criadora de filhos fracassados ou débeis ou pouco inteligentes, mas, também, de monstros delinquentes. 

Também é sufocadora de gênios. 50% do “sexo perdido” de Ferdinand Lundberg são consideradas “rejeitadoras, super-protetoras ou dominadoras”. E ela precisando APENAS conseguir atravessar o dia sem desmaiar de cansaço e a noite com poucas horas de sono.

O mundo não se fez num dia e a evolução é cumprida lentamente. Mas você, mãe, é a culpada de sempre se as coisas derem errado. E não será lembrada se derem certo. Em verdade, eu te digo: relaxe, irmã! Durma mais um pouco, faça do quarto um acampamento, curta um cineminha, jogue muita conversa fora. O que a espera é um “dia das mães” mixuruca ou recheado de inutilidades domésticas. Rosas e tulipas? Espere sentada!

Passados os anos de sua juventude, tendo dado o melhor de si, receberá a visita da família de seu filhote, com a norinha e seu próprio bando de filhotes. Eles a olharão com ar condescendente, recusarão seus conselhos com delicadeza e proferirão o veredito: “mãe, você não sabe cuidar de criança”. 

Dra Relva é pediatra em Brasília onde, depois de perceber que, frequentemente, crianças são espancadas pelas próprias famílias, criou o grupo Pediatria Radical, ainda no Orkut. O lema do grupo é “bater em criança é covardia” e a criação não-violenta é a premissa sobre a qual outros tantos conteúdos são discutidos. A filosofia do grupo Pediatria Radical já foi publicada em livro. Você pode acessar o grupo no Instagram (@pediatriaradical) e no Facebook.
Opiniões e conceitos expressos nos artigos são de responsabilidade dos autores

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