InícioEditorialEsportesConheça a "geração canguru" formada por adultos que moram com os pais

Conheça a “geração canguru” formada por adultos que moram com os pais

A sina era a mesma para quase todo jovem: passou da adolescência, já podia trabalhar e casar. Era chegada a hora de sair da casa dos pais e, com ela, vinham as responsabilidades de quem precisa se manter por si. No caso do corretor de imóveis Vilmário Lima, 64 anos, essa transição veio ainda adolescente: aos 16 anos, saiu da casa dos pais, em Antas, no Nordeste do estado, para vir morar sozinho em Salvador. 

“Não tinha uma perspectiva muito grande de trabalho no interior. Ou você trabalhava na roça ou na prefeitura. Como eu não consegui nem uma coisa, nem outra, saí de casa para tentar ser jogador de futebol”, lembra ele, que jogou futebol profissional por uma década. “Saí e fui para o mundo morar sozinho. Foi aquela dificuldade, mas estou vivo”. 

Com uma nova geração, porém, vem uma nova realidade. Agora, relatos como o de Seu Vilmário têm ficado cada vez mais raros. Em seu lugar, cresce o número de adultos com idades entre 25 e 34 anos que ainda moram com os pais – e que, por ora, não pretendem ou não têm como mudar essa situação. A chamada “geração canguru” é uma tendência mundial, mas, aqui, ganha contornos próprios pelo contexto de crises econômicas, políticas e até sanitárias. 

Uma pesquisa divulgada em novembro do ano passado pela Kantar Ibope Media mostrou que o número de brasileiros que saía da casa dos pais nessa faixa etária tinha aumentado 137% em comparação aos 10 anos anteriores. Esse movimento, porém, já vinha sendo captado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) há alguns anos. Na Síntese de Indicadores Sociais produzida pelo órgão federal em 2016, a proporção de filhos entre 25 e 34 anos que moravam na casa dos pais havia passado de 21,7% para 25,3% entre 2005 e 2015. 

Essa mudança de perfil, porém, pode vir com conflitos. Há, inclusive, dúvidas de responsabilidade em geral: quais são as responsabilidades de cada um? Até quando as famílias – mães, pais e outros responsáveis – têm obrigações legais com os filhos?

De fato, famílias não têm obrigação legal de garantir a sobrevivência dos filhos adultos.

“A obrigação está enquanto essa pessoa ainda é incapaz, portanto, até os seus 18 anos”, diz a advogada Lara Soares, mestra em Direito e presidente da comissão de Direito da Família da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Bahia (OAB-BA). 

Sustento
No entanto, a jurisprudência já estabelece que, se um filho está fazendo faculdade – algo que lhe dará uma capacitação profissional básica -, os pais têm a obrigação de sustentá-lo nesse período. “Esse sustento é integral. Vai desde o fornecimento de alimentos, de garantir a sobrevivência, até sua própria manutenção com vestimenta, moradia e lazer. Tudo que permita a este ser humano ter bem-estar para ter tranquilidade durante essa capacitação”, acrescenta Lara. Essa obrigação, porém, é restrita à primeira faculdade dos filhos. 

Para a advogada, esse fenômeno de permanecer na casa dos pais por mais tempo reflete uma realidade de pessoas jovens que estão em busca de mais qualificação e de uma colocação melhor no mercado de trabalho. No entanto, a pandemia da covid-19 trouxe uma rearrumação desse modelo familiar. Ela lembra que, com a diminuição de renda nesse período, muitas pessoas retornaram para a casa dos pais. 

“São jovens que têm algumas dificuldades no mercado de trabalho porque não têm tanta experiência e, por outro lado, não têm uma remuneração que se considere suficiente para manutenção do mesmo padrão. Tudo isso foi ainda mais percebido na pandemia. Assistimos não só um retardamento da saída, mas um retorno de quem já tinha saído para esse ninho”, analisa. 

Precarização
A jovem Renata*, 25, sentiu na pele como a pandemia afetou seus planos nos últimos anos. Para começar, ela se formou em Comunicação aproximadamente um ano após o período inicialmente devido, por causa de todos os ajustes que a faculdade teve que fazer nos períodos de distanciamento social.

“Eu já estava no mercado de trabalho, mas quando comecei a deixar de ser estagiária e o que eu recebo até hoje não é suficiente para que eu consiga me sustentar em todos os âmbitos da minha vida, contando com plano de saúde, moradia e alimentação”, diz ela, que vive com os pais, o irmão e o cachorro. 

Renata chegou a pesquisar quanto sairia para dividir o apartamento com outra pessoa, mas, no fim, percebeu que a melhor opção era continuar na casa dos pais. Enquanto isso, usa parte de sua renda para fazer outros cursos e ter mais liberdade. Entre seu ciclo de  amigos, essa realidade é comum. Encontrar alguém que já viva sozinho, por conta própria, é coisa rara. 

A situação financeira, por enquanto, é de instabilidade. Renata é contratada como pessoa jurídica – o que significa que não tem carteira assinada e nenhum outro benefício trabalhista. Se for demitida, não recebe nada. 

“Termina que eu sempre tenho dois trabalhos fixos e luto para ter um terceiro e até um quarto para conseguir renda extra e me sentir mais confortável. Todos os meus amigos estão na mesma página. Todo mundo é novo no mercado de trabalho, os salários são insuficientes e a gente não consegue ter essa autonomia financeira”. 

Ela diz perceber as diferenças entre a geração de seus pais – que, aos 25 anos, já estavam casados e pensando em filhos – e seus amigos na mesma faixa etária. “A gente nem cogita essa possibilidade, não por falta de vontade, mas por entender que agora não é o momento e que a gente tem que fazer outras coisas antes de realizar o sonho da casa própria”, acrescenta. 

O depoimento de Renata é familiar para muitos jovens. Para muitos, há um denominador comum: o aspecto financeiro. Custa muito sair de casa. Os custos médios podem consumir em torno de 50% a 70% do orçamento de uma pessoa, segundo a economista Isabel Ribeiro, vice-presidente do Conselho Regional de Economia da Bahia e gerente-adjunta da unidade de gestão estratégica do Sebrae-BA. 

“Fica muito pouco para fazer uma especialização, para ter uma cultura, para ter lazer. Além disso, estamos falando de uma geração que não fica tanto tempo em um mesmo emprego”, pondera. 

Além de um perfil que se atrairia mais por novas experiências em outros postos de trabalho, essa geração de adultos enfrenta uma precarização das relações trabalhistas. “Essa pessoa que se formou na pandemia deve ter passado o tempo todo trabalhando de forma online, administrando o horário que a gente sabe que extrapola e ninguém nos dá a renda extra”, diz. 

Com a escassez de vagas em empresas de médio e grande porte, são as pequenas e micro empresas que acabam absorvendo a maior parte desses jovens trabalhadores.

“A gente está vivendo em um mundo de instabilidade. Talvez, nesse processo de adaptação, os pais precisem dar uma forcinha para que essas pessoas se equilibrem minimamente para construir sua estabilidade”.  

Convivência
O acolhimento dos pais, nesse contexto, é importante. Para a psicóloga Isabella Barreto, porém, esse acolhimento deve vir com a consciência de que não se trata de crianças ou adolescentes. Da parte da família, é preciso reconhecer que estão lidando com uma pessoa adulta – que, portanto, tem competências e habilidades para olhar para si mesma. 

“O filho deve entender que pode colaborar, pode ajudar. É uma pessoa que pode estar ali não levando um peso para a família, mas na condição de ser alguém capaz de produzir uma qualidade de vida melhor naquele meio”, diz. 

A psicóloga pondera que a pandemia fez mesmo com que esse movimento se instalasse de maneira mais forte devido ao impacto na renda. No entanto, por vezes, essa convivência entre pais e filhos adultos em um mesmo ambiente pode trazer o que ela chamou de prejuízos psíquicos e emocionais para todos os envolvidos. 

De certa forma, quando há a opção pelo conforto, algumas pessoas podem deixar de enfrentar distanciamentos efetivos.

“Mesmo tendo toda essa consciência de planejamento, traz um prejuízo emocional. O que faz com que a gente amadureça são os desafios, o que faz com que a gente crie repertórios e estratégias para a vida são as crises, os confrontos. É você se perceber na condição de que ninguém vai fazer isso por você”, explica. 

Ao mesmo tempo, Isabella diz que é comum existir um constrangimento ou vergonha, por parte de quem ainda está na casa dos pais. Por vezes, essas pessoas são colocadas na condição de imaturas. “A gente vive numa sociedade que cobra de você o tempo todo desempenho, sucessos. Esse sucesso é linkado a tudo que você conseguiu conquistar e comprar. Se você não for uma pessoa com uma cabeça muito bacana, pode ir para uma condição de baixa autoestima”. 

Não é impossível que essa convivência traga alguns conflitos. Quando a pessoa é menor de idade, sabe-se que ela é responsabilidade dos pais. Quando os filhos já são adultos, deve partir deles também, segundo Isabela, o reconhecimento de que mesmo que não haja responsabilidade dos pais, a casa é deles. Isso deve se refletir na participação financeira e também nas atividades de manutenção da casa. 

“É preciso ter o entendimento de que não é ajuda, mas participação. Todos estão dividindo aquele espaço, mas aquele espaço tem um dono que dita as regras e elas precisam ser respeitadas”, enfatiza. 

Movimento tem consequências na estrutura populacional 

O debate sobre a geração canguru tem acontecido em diferentes países, como ressalta o geógrafo Clímaco Dias, professor do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia (Ufba). “Esse é um movimento que é causa e é consequência”, diz, referindo-se aos desdobramentos na estrutura populacional. 

Assim, é possível dizer que essa tendência está conectada a outros fatores de forma concomitante: ao fato de que as pessoas estão se casando mais tarde e também demorando mais para ter seus próprios filhos, de acordo com Dias. 

“Há uma diminuição na fecundidade e, consequentemente, há uma diminuição na natalidade. Também há outra questão importante: ficar na casa dos pais hoje não tem tanto conflito geracional. A diferença entre o que minha filha e eu pensamos é bem menor do que o choque e os conflitos que eu tinha com minha mãe ou meu pai”, avalia o professor. 

Ele acredita que, ainda que dependendo da faixa de renda, mais pessoas possam ser afetadas pelo aspecto financeiro, não é só o fator econômico que provoca a geração canguru de forma geral. “A gente já teve problemas econômicos muito maiores e que não refletiram dessa forma. A década de 1980, por exemplo, é a chamada década perdida economicamente. Claro que vai influenciar, porque não existe um só fator para um fenômeno tão complexo, mas existia um desejo de sair de casa”. 

Essas mudanças comportamentais podem influenciar a estrutura populacional. É por isso que alguns países têm adotado políticas para estimular a natalidade e até a China abrandou a política do filho único que esteve em vigor por 35 anos. A flexibilização da política chinesa teve início em 2016 e, no ano passado, o país chegou a anunciar subsídios e deduções fiscais a famílias que tivessem mais crianças. 

“Esse movimento de contenção da população é mais extensivo do que a geração canguru. Tudo isso reflete em um movimento para casamento e para ter filhos”, acrescenta. 

Para o corretor de imóveis Vilmário Lima, que saiu da casa dos pais aos 16 anos, hoje existe mais apoio para que os filhos permaneçam em casa por mais tempo, por parte da família. 

“Para alguém que é solteiro, se manter é muito complicado. Ou tem um emprego muito bom ou vai passar dificuldade. Sair de casa é uma decisão imensa. Quando ele olhar para trás, vai manter o porto seguro ou largar? Eu confesso que, se eu tivesse um apoio, se meu pai tivesse condições financeiras na época, eu não sairia”, acrescenta. 

*Nome fictício

Você sabia que o Itamaraju Notícias está no Facebook, Instagram, Telegram, TikTok, Twitter e no Whatsapp? Siga-nos por lá.

Últimas notícias

Gleisi sobre indiciamento de Bolsonaro e aliados: “Merecem prisão”

A presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, afirmou nesta quinta-feira (21/11) que o indiciamento...

TJ-BA libera concurso público para 183 vagas no Médio Sudoeste baiano

Uma decisão do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) autorizou um concurso público da...

Estudo sugere: Covid-19 grave pode diminuir células cancerígenas

Um grupo de pesquisadores do Northwestern Medicine Canning Thoracic Institute, nos Estados Unidos, pode...

Concurso Nacional Unificado (CNU) divulga novo cronograma

Nesta quinta-feira (21), o Ministério da Gestão e Inovação de Serviços Públicos (MGI) divulgou...

Mais para você