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Dina votou no Bolsonaro. Tião, no Lula. E nós três nos encontramos no Goiás profundo

Dois dos meus amigos mais próximos, que estão comigo nos momentos mais difíceis, não são da minha classe social – se é que pertenço a uma –, não têm instrução universitária, não são de ler livros nem de maratonar séries e nem têm perfil em rede social. Meus dois muito queridos são das profundezas do Goiás, nascidos nos começos de Brasília. Dina é viúva, três filhos adultos, quatro netos. Tião é separado, três filhos, uma neta.

Dina nasceu numa fazenda nas vizinhanças do DF. Ainda nem sabia andar quando a mãe foi embora na sela do cavalo de um homem por quem se apaixonara. O pai entregou as seis crianças a parentes próximos e a famílias remediadas e saiu vagando de cidade em cidade, com o corpo deambulante de dor.

Tião nasceu e cresceu na roça, o pai morreu muito cedo, a mãe logo se casou novamente e o padrasto punha os enteados para trabalhar no pesado desde o nascer até o pôr-do-sol. Quando começou a lavrar a terra, o menino era da altura do cabo da enxada. Cresceu levando surra de espada-de-são-jorge até que um dia, aos 16 anos, com as pernas e os braços em fogo, esperou anoitecer, enrolou os panos que tinha num saco de estopa e fugiu rumo a Brasília.

Dina é branca de pele rosada e olhos cor de mel, composição muito comum no sertão brasileiro aonde os escravizados demoraram a chegar.

(No magistral Em busca da nação (TopBooks), Antonio Risério explica a ocupação do interior do Brasil: primeiro vieram os vaqueiros, “originalmente um homem ibérico, um lusitano, ou já um brasileiro, um luso-brasileiro, um mazombo”. Daí a pele branca de goianos nascidos e criados na lida do campo até a migração em massa para as cidades).

Tião é preto. Não sabe contar de onde os pais vieram, circunstância tão comum nesse Brasil despedaçado, de histórias familiares com pontas perdidas pelas migrações, pela pobreza, pela luta insana pra se manter vivo. Desde que chegou ao quadrado, há mais de 40 anos, Tião viveu da construção civil. Começou como ajudante de pedreiro, virou pedreiro, depois mestre de obras, aprendendo com os erros dos outros e com os próprios erros.

Os dois, Dina e Tião, moram bem longe do Plano Piloto. Ela, em Planaltina de Goiás. (Para quem não sabe, havia uma Planaltina colonial que, com a criação do DF, foi dividida em duas. A parte urbana, com os casarios dos século XVIII e XIX, ficou com a nova capital. E a outra parte, erma, perto da Lagoa Formosa, ficou com o Estado de Goiás).

Tião mora no Sol Nascente desde que a RA era uma favela. Sozinho, nos fins de semana e feriados, construiu apartamentos e lojinhas no lote de esquina. Pensava em viver dos alugueis quando a velhice chegasse. De tanto carregar peso e assentar cerâmica, o joelho estragou geral. Mesmo assim, Tião ainda não conseguiu se aposentar, segue lutando com o INSS.

Sempre que dá, meus amigos e eu nos juntamos pra assar uma carninha, tomar cerveja e ouvir música caipira de raiz. Conversamos sobre os filhos, a velhice, o jeito certo de deixar o feijão com o caldo grosso, o de deixar a costela molinha no churrasco, as pingas que descem como uma luva, a morte do Leandro (de Leandro e Leonardo), discutimos se quem tinha mais dinheiro era o Milionário ou o Zé Rico, ou qual é o Chitãozinho e qual é o Xororó. E relembramos os clássicos inesquecíveis das primeiras grandes duplas sertanejas. Tião sabe tudo de caipira raiz.

Dina não é exatamente bolsonarista, mas votou no Bolsonaro nas duas eleições. Ela não me diz isso, mas eu sei. Embora não seja petista, Tião sempre votou no Lula e não sei bem por quê. Não falamos de política nos nossos encontros de amigos raiz.

Só sei que, quando o bicho pega, peço ajuda e eles aparecem (e vice-versa). Dina gasta até três horas de ônibus de Planaltina de Goiás até o meu CEP. Tião tem a facilidade do metrô, porém precisa de mais dois ônibus para ir da casa dele à minha. Mesmo quando não consigo facilitar essa vinda, eles aparecem e gritam do portão – cheguei! Ela foi cuidadora da minha mãe; ele fazia reformas e consertos em casa. Hoje, somos apenas, tão-somente e verdadeiramente amigos.

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