Quatro mães brasileiras estão desde segunda-feira (28/10) no Distrito Federal em uma agenda lotada de compromissos nos principais órgãos do governo federal. Juntas, elas buscam a atenção e o apoio das autoridades brasileiras para repatriar os filhos, crianças entre 6 e 8 anos que estão “presas” em outros países.
Separadas por oceanos e milhares de quilômetros de distância, as mulheres enfrentam as diferentes interpretações de leis e tratados internacionais, a dificuldade de acesso à Justiça em um país estrangeiro e diversos preconceitos e violências. Mesmo assim, continuam firmes no propósito de voltarem a ter uma vida ao lado de seus rebentos.
Além de contarem umas das outras, elas têm apoio dos seguidores nas redes sociais, onde juntas somam quase 1 milhão de pessoas que as acompanham e dão auxílio, incluindo financeiramente. Ao longo dos anos, as mães também já estiveram com senadoras, deputadas e juízes que ajudaram a dar voz ao esforço delas.
“Trazer nossos filhos de volta ao Brasil é uma profissão em tempo integral, mas a gente não recebe por isso. Nós já devemos ter gastado o equivalente a um apartamento, mas recebemos doações de pessoas que se sensibilizam com a nossa dor. Enquanto isso, as autoridades [brasileiras e internacionais] tentam de tudo para nos cansar, até que a gente desista. Mas eles não sabem que nós somos mães, e que nunca vamos desistir, porque nós seríamos capazes de enfrentar o mundo inteiro para ter nossos filhos de volta”, diz Karin Aranha, mãe de Adam Aranha (leia mais abaixo).
Para duas dessas mães, cujos filhos estão na Inglaterra e na Irlanda, a dificuldade está no entendimento da Convenção de Haia de 1980, da qual o Brasil é signatário. O texto assegura a permanência de crianças em seu país de “residência habitual”, independentemente do país de origem e da convivência com ambas as famílias paterna e materna.
Essas mães, portanto, buscam questionar a legitimidade do retorno das crianças ao país estrangeiro, que foi solicitado pelas famílias paternas ao governo brasileiro com base nos artigos da Convenção.
As duas mães restantes poderiam usar a mesma Convenção para apelar a repatriação das crianças, no entanto, elas encontram-se no Líbano e no Egito, que não são signatários. Assim, conforme explica a professora de direito internacional da Universidade de Brasília (UnB) Carolina de Abreu, essas mães dependem de negociações diplomáticas entre os países e o Brasil.
“Quando temos um caso de uma criança que foi levada por um dos genitores a um outro país sem autorização, as duas principais vias para garantir o retorno são a Convenção de Haia ou, como é no caso do Egito e do Líbano que não são signatários, o reconhecimento de ação estrangeira. Por exmeplo, a Justiça do Brasil reconhecer a guarda unilateral da criança”, diz.
“Assim, em um caso em que o Brasil não tem jurisdição para agir ou que há uma resistência muito grande do país de origem em reconhecer essas ações, uma das últimas opções disponíveis é apelar para as relações diplomáticas entre o presidente da República e o chefe de estado do respectivo país”, completa.
O Metrópoles conversou com estas mães e acompanhou quando, nessa quinta-feira (31/10), elas estiveram em um movimento na Praça dos Três Poderes, com placas estendidas de frente para o Palácio do Planalto, pedindo a volta das crianças ao Brasil. Conheça a história dessas mulheres a seguir:
Bianca Moreira
- Mãe das gêmeas Laila e Júlia, de seis anos;
- As crianças foram levadas pelo genitor, ex-companheiro de Bianca, ao Líbano em 2022;
- Atualmente, as crianças se encontram em um país que está em guerra e é alvo de bombardeios.
Em 18 de outubro último, o Metrópoles contou o desespero de Bianca Moreira Carneiro, 43 anos, para tirar as filhas gêmeas Laila e Júlia, seis anos, do Líbano. As meninas foram levadas pelo ex-marido para o país do Oriente Médio em 2022.
Bianca busca ativamente o retorno das filhas, mas enfrenta obstáculos por causa da relação com o pai das crianças, que teria imposto uma série de condições para voltar ao Brasil com as gêmeas. De acordo com a brasileira, mesmo após conseguir três oportunidades em um voo de repatriação para que as crianças e o genitor viessem para o Brasil, o ex-marido de Bianca e nem as filhas saíram do país.
A professora menciona que a justificativa dada pelo ex-marido para não comparecer até o local seria o longo percurso até o aeroporto. No entanto, ela garante que um ônibus da embaixada passaria a 20 minutos de distância da região em que suas filhas gêmeas estão.
“Minhas filhas não estão estudando, estão num lugar inseguro que pode faltar as coisas. Pode faltar tudo a qualquer momento, a violência [da guerra] pode chegar até elas de múltiplas maneiras. Então, não tem como ter paz assim”, ressalta.
De acordo com a mulher, o ex-companheiro conseguiu sair do país com as gêmeas porque uma procuração, assinada por ambos anteriormente, permitia que as crianças viajassem com apenas um dos genitores. “Hoje, elas continuam no Líbano, quase dois anos depois. Elas não falam português, porque foram privadas de ter contato comigo. Eu conseguia falar com elas quase diariamente por vídeo nos primeiros seis meses, mas depois disso as ligações foram ficando cada vez mais espaçadas”, conta Bianca. Além disso, todos os contatos são vigiados pelo pai.
Em agosto de 2022, uma decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) aceitou uma concessão de tutela de urgência e indicou que a mulher tivesse a guarda unilateral das meninas. Também foi expedido um mandado de busca e apreensão, e o aviso foi encaminhado à Polícia Federal (PF) e à Interpol. No entanto, segundo a professora, as ações não surtiram efeito porque o Líbano não é signatário da Convenção de Haia.
“Legalmente, do ponto de vista jurídico, ele não saiu de forma ilegal, mas na procuração constava que as crianças poderiam viajar desacompanhadas de um dos pais desde que tivesse data marcada para a volta, a passagem de retorno deveria estar emitida, e essa passagem estava emitida para o dia 21 de junho de 2022. A partir do momento que, nesta data, ele não retornou, o ato foi configurado como ilegalidade”, aponta.
Karin Aranha
- Mãe do Adam, de cinco anos;
- O menino foi levado pelo pai em 2022, ao Paraguai, sem autorização da mãe pela Ponte da Amizade. Adam e o genitor depois seguiram para o Egito, onde residem atualmente;
- Mesmo com mandando de prisão emitido contra o pai de Adam, que é naturalizado brasileiro, e com o nome da criança incluído na lista amarela da Interpol, o garoto ainda não retornou ao país de origem.
Rachel Aranha, 43, é mãe de Adam Aranha, cinco anos, e conta que o genitor da criança, Ahmed Tarek Mohamed Fayz Abdelkalek, fugiu com o filho sem pela Ponte da Amizade, que liga o Brasil e o Paraguai, em 2022. O menino foi então levado para o Egito, país de origem de Ahmed, onde os dois moram desde então.
Atualmente, o nome de Adam consta na lista amarela da Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol), dedicada a crianças desaparecidas ou vítimas de sequestro internacional. Até 15 de janeiro deste ano, o nome de Ahmed também constava na lista de procurados pela corporação.
Ahmed Tarek é naturalizado brasileiro desde 2020, e em 2023 foi alvo de um mandado de prisão preventiva emitido pela Justiça federal em São Paulo (SP), após denúncia feita pelo Ministério Público do estado. Além disso, no Egito, Karin defende ação na Justiça do país para que seja reconhecida a guarda unilateral sobre a criança.
“Eu tenho que ir ao tribunal no Egito e tenho de encarar um sequestrador, fugitivo procurado, durante uma audiência que discute se eu tenho ao não ‘a posse’ sobre o meu filho. Eu tive que me mudar para lá, me converter ao Islamismo, tudo para provar que esse homem está errado, seja no Egito, seja aqui no Brasil”, conta Karin.
“Tudo o que falta é que alguém faça o que tem de ser feito. Que as autoridades façam o trabalho delas. Enquanto isso, meu filho continua a não ir à escola, e eu já perdi dois anos da vida dele, da infância dele. Quem vai me trazer esses anos de volta?”, questiona Karin.
Marcela Padilha
- Mãe do Enzo, de oito anos;
- O retorno do menino, solicitado pela família paterna do menino, foi obtido por meio da Justiça através da Convenção de Haia;
- Atualmente, o menino vive com a avó paterna, suspeita de integrar um esquema de prostituição e tráfico internacional de brasileiras para o Reino Unido.
Marcela Padilha, 25, conheceu o genitor de Enzo, que já era maior de idade, em Goiânia, quando estava prestes a completar 16 anos. Ao receber a notícia do nascimento do filho, foi oferecida a Marcela a oportunidade de morar com a família do homem em Bristol, na Inglaterra.
“Minha mãe foi mãe solo e nós passamos por muitas dificuldades quando eu era criança. Então quando me ofereceram aquilo, de dar para o meu filho um mundo de oportunidades que eu nunca tive, dele ter o contato com o pai e com a família paterna, eu aceitei. Porque eu achei que fosse ser o melhor para ele”, diz Marcela.
A mãe conta que viveu sete anos na casa da família paterna de Enzo. Ela conta que, enquanto o pai da criança estava de férias pela Europa com namorada, os cuidados da criança ficavam a cargo da avó paterna. Segundo Marcela, a avó e o marido alienava a mulher, ignorava suas decisões para criança e queria “criar o filho como se fosse dela”.
Insatisfeita com a situação na qual estavam vivendo, Marcela decidiu voltar ao Brasil com Enzo, em 2023. No entanto, após a chegada deles, a família paterna do menino fez o pedido do retorno da criança, concedido através da Convenção de Haia.
Além disso, a mãe atualmente está sendo impedida pela família paterna de ver ou falar com o filho, desde então. O único jeito que Marcela encontrou para ter contato com Enzo é pela internet, quando o menino usa aplicativos instalados no tablet para conversar com ela.
Atualmente, o menino vive com a avó paterna, que, segundo reportagem da BBC na Inglaterra, é suspeita de integrar um esquema de prostituição e tráfico internacional de brasileiras para o Reino Unido. “Aquele ambiente não é bom para ele. Ele não vai a escola, não tem contato com outras crianças e, agora, desenvolveu um ‘tique’ de ansiedade. Ele diz também que começou a receber da avó remédios, que eu não sei para o que servem”, conta.
Raquel Canterelii
- Mãe da Júlia, de oito anos, e da Isabella, de seis anos;
- A mãe e as meninas moravam na Irlanda, onde a mãe foi vítima de cárcere privado e a filha mais nova vítima de abuso sexual;
- As filhas de Raquel foram tiradas do Brasil pela Polícia Federal (PF) antes que passassem pelo processo de análise recursal.
Raquel Canterelii, 35 anos, morava na Irlanda com o ex-companheiro, irlandês, com quem teve duas filhas, Júlia e Isabella. Em 2019, contudo, Raquel teve os documentos tomados pelo homem, que a proibia de deixar a casa onde moravam no interior do país. Na mesma época, o homem começou a abusar sexualmente da filha mais nova, de menos de dois anos.
A brasileira, contudo, conseguiu contato com as autoridades locais e com a embaixada brasileira na Irlanda, que auxiliou que a mulher fosse para um abrigo com as filhas enquanto esperasse a emissão de novos passaportes para que as três retornassem ao Brasil. O genitor das crianças, que segundo Raquel é uma pessoa influente na comunidade irlandesa, conseguiu “atrasar” a embaixada e mover rapidamente um processo que deu a ela a guarda das meninas.
“Quando acabei de conseguir ir para o abrigo com as minhas filhas, ele conseguiu do dia para noite que fosse marcada uma audiência para que fosse julgada quem seria o responsável por elas. Eu não tive direito a um advogado e a juíza, que inclusive disse durante o julgamento que conhecia a mãe dele [do genitor das crianças], concedeu a guarda unilateral às minhas filhas ao abusador delas, sem sequer me ouvir”, relata.
Apesar do processo na Justiça irlandesa, a Justiça do Brasil reconheceu as situações de violência vividas pelo trio, e, em setembro daquele ano, as três conseguiram deixar a Irlanda rumo ao País de Gales. De lá, elas foram para Londres, Amsterdam, Bruxelas, Porto e Lisboa, onde finalmente conseguiram um voo para o Rio de Janeiro, escoltadas por agentes da Polícia Federal (PF).
A luta pelas filhas, porém, não acabou ao chegaram ao Brasil. Um processo movido pelo pai das crianças, com base na Convenção de Haia, era responsável por decidir com quem ficaria a guarda das filhas. Apesar de Raquel ter decisão favorável em primeira instância, um voto em segunda instância foi capaz de mudar a vida da mulher e das meninas.
“O ministro-relator votou afirmando de que o Brasil deveria respeitar as convenções internacionais e as legislações estrangeiras e decidiu que minhas filhas deveriam imediatamente voltar a Irlanda. Não tive a chance de ser comunicada da decisão, de apresentar recurso. Fiquei sabendo da decisão quando a PF apareceu na minha porta, às 6h da manhã, para tirar minhas filhas de mim”, lembra.
A decisão que decidirá se Raquel irá ter a guarda das filhas de volta atualmente está sob apreciação do Superior Tribunal de Justiça, mas um parecer do Ministério Público Federal (MPF) já se mostrou favorável à causa da mãe.
O quê diz o governo brasileiro
O Metrópoles acionou os principais órgãos do Poder Executivo Federal para entender quais ações estão sendo adotadas pelo governo e quais as possíveis soluções para os casos das quatro mães.
O Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty, informou, em nota, que “tem prestado assistência, nos limites legais da atuação consular, às mães brasileiras mencionadas na consulta. Por meio das Embaixadas em Beirute, no Cairo, em Dublin e do Consulado-Geral Londres, o Itamaraty, a depender do caso, tem provido documentação às interessadas, aconselhamento jurídico, interpretação, entre outras ações de assistência cabíveis em casos de subtração internacional de menores”.
O Ministério da Defesa, responsável pelos voos de repatriação da Força Aérea Brasileira para brasileiros no Líbano, informou que é responsável apenas pela operacionalização dos voos, e que “fica ao Itamaraty a decisão de quem embarca ou não no avião”.
O Ministério da Justiça e da Segurança Pública, responsável pelo cumprimento de sentenças de mandados de prisão – mesmo que no exterior -, disse em nota que “o Egito não é signatário da Convenção da Haia sobre os aspectos civis da subtração internacional e, portanto, não há Autoridade Central designada para o tema naquele país”.
Por fim, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República informou que o caso já está sob conhecimento da Presidência e que a situação foi repassada ao Itamaraty.