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Mistério demais para uma vida abarcar

Havia um coelho no parque onde passeio todos os dias com Pudim, meu pequeno filho peludo. Um coelho branquinho, quieto e solitário. Gostava de vê-lo ali no mato, comendo alguma cenoura que as pessoas levavam para ele ou simplesmente observando a vida passar. Há dois dias, um cachorro grande se soltou da guia de sua dona e matou o coelho. Passava por lá nessa hora e, quando cheguei perto, vi o coelhinho sendo levado nos braços pelo funcionário do parque, para ser enterrado. Ele tinha os olhos azuis abertos numa expressão de perplexidade. Era lindo.

Soube depois que o cachorro que o matou já havia atacado outros cães menores e que a dona havia sido alertada do seu comportamento agressivo. Mas o estrago estava feito. Voltei com o peito sufocado. Aquilo acabou com o meu dia e até agora a sensação permanece. Impossível não me compadecer com a enorme fragilidade de um animal dócil e silencioso, que sabe-se lá como foi parar no parque. O mundo não é para os fracos.

Talvez esse sentimento que relato aqui seja um tanto exagerado. Como a morte de um animal que sequer convivia comigo poderia causar tamanho sofrimento? Em tese, não faz mesmo o menor sentido. Mas, enquanto escrevo, começo a crer que não é algo totalmente descabido. Não para mim. A dor pelo coelhinho morto seria apenas mais uma manifestação do pesar secreto que me acompanha há muito tempo e que explica em parte a minha introspecção e uma tendência inata à melancolia.

Não vou me expor ainda mais em praça pública, mas agora tudo me parece cristalino. É como se o animal desfalecido carregado pelo rapaz fosse uma criança que saiu para fora do círculo antes da hora e que naquele momento se materializava à minha frente. “Apenas a matéria vida era tão fina”, já cantou Caetano. Invólucro delicado, a vida é fácil de romper, como a pele ferida por um prego. É um susto, um sussurro, um calafrio.

Absorvo tudo como uma fralda descartável. Guardo, metabolizo e não consigo pôr para fora. Nacos numerosos de matéria vida sem vida se refestelam em algum canto de mim. Daí certa tristeza imensurável. Daí um temor latente que se traveste em resignação. É uma dor que compartilho com o poeta inglês John Donne, que já em 1624 escrevia:

“Nenhum homem é uma ilha, cada homem é uma partícula do continente, uma parte da Terra. Se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio. A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti.”

A mim diminui também a morte de qualquer ser vivo: coelhos, cães, gatos, macacos, marrecos, garças, gazelas, leões, jacarés, vacas, carneiros, mangueiras, pinheiros, sequoias, orquídeas, bonsais. Recentemente, no mesmo parque em que passeio todos os dias com Pudim, plantamos um pequeno arbusto que ficou grande demais para a varanda aqui de casa. Acompanhava diariamente a sua difícil adaptação ao solo arenoso em que foi replantado. Percebia que aos poucos as folhas voltavam a ficar verdes e viçosas. Um dia, os sujeitos que fazem a poda da grama vieram e arrancaram tudo.

Sofro com a morte porque a vida me fascina e deploro a sua brevidade. Em O Tempo, Esse Grande Escultor, Marguerite Yourcenar reflete: “Teu corpo compõe-se de três quartos de água, e de um punhado de minerais terrestres, bem pequeno. E esta grande chama em ti cuja natureza não conheces. E em teus pulmões, que se enchem e esvaziam sem cessar no interior da caixa torácica, o ar, esse elemento estranho, sem o qual não consegues viver”.

Somos, os que pesam sobre a Terra, uma sucessão de enigmas que não se desvendam. Um caos revolto e incontrolável feito as ondas de Nazaré, que irrompe do nada para em seguida se traduzir em beleza finita – a chama a que se refere Yourcenar. O ar que respiramos, a carne de outros seres que dilaceramos, a perpetuação da nossa glória e desdita em um mero ato intenso de poucos minutos. Proteínas, células, neurônios, ossos, tendões, órgãos, nervos, epiderme e por fim pó. É mistério demais para uma vida abarcar.

Havia um coelho no parque onde passeio todos os dias. Havia um parque. Havia uma sucessão de dias. Havia este texto, que por poucos será lido. Havia um homem e o seu cão. Havia um planeta chamado Terra. Havia um Sistema Solar, uma Via Láctea, um Universo. Havia.

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