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Uma dupla de três na cadência do samba e na devoção ao sagrado

 É recomendável começar a audição do recém-lançado álbum Alto da Maravilha (Natura Musical/Máquina de Louco), que une a dupla Antônio Carlos & Jocafi ao músico Russo Passapusso, pela última faixa, a 13.ª. Isso porque, na ordem escolhida pelos protagonistas do álbum, ela é Catendê. Trata-se de uma canção lançada em 1970 – e a única não inédita do disco -, gravada no disco Vinicius de Moraes em La Fusa, na voz da cantora Maria Creuza.

E não é o peso do Poetinha ou da tradicional música popular brasileira que se impõem na atual gravação. Catendê, segundo Antônio Carlos, é a mãe de todas as primeiras canções que a dupla fez, na virada dos anos 1960 e 1970. Ela carrega, então, o forte DNA da parceria dos músicos baianos e do tipo de música que surgiu a partir dela.

Catendê tem total influência da música e da religião africanas que aportaram na Bahia a partir do século 16. O toque dos atabaques está nos acordes do violão. Catendê é Ossain, santo de cabeça de Antônio Carlos. O orixá das folhas e das ervas medicinais no candomblé. Em alguns lugares da África, também pode ser a divindade do tempo (clima). Na tradição católica, é São Benedito, um santo preto, protetor das pessoas escravizadas

Portanto, nessa canção está o que une a música de Antônio Carlos & Jocafi, um afro-funk ou afro-beat, que já soma mais de cinco décadas de estrada, e Passapusso, apontado como um dos nomes da geração afro-pop da Bahia – é bom lembrar de seu trabalho no grupo BaianaSystem. Todos eles estão com os pés fincados em suas raízes, que também são as da música brasileira.

“Antes mesmo de conhecer Antônio Carlos & Jocafi, eu entendi que nessa canção estava o essencial. Meu sonho de vida era encerrar esse disco com Catendê. Ela grita coisas imprescindíveis para o ser humano. É um caminho de cura”, diz Passapusso.

Nessa nova versão de Catendê, uma das vozes é do cantor Curumin, um dos produtores do disco ao lado dos músicos Zé Nigro e Lucas Martins. Ele evoca a doçura que Maria Creuza deu para a versão original. Nisso também há a devoção ao sagrado.

Após a audição de Catendê, outro conselho válido é desativar o “insensível” shuffle play (a reprodução aleatória) proposto pelos aplicativos de música e percorrer o mesmo caminho que Antônio Carlos, Jocafi e Passapusso pisaram nessa mata repleta de sons, oportunamente ilustrada por Mauricio Fahd na capa do álbum.

Passapusso divide Alto da Maravilha em duas partes: o lado pé, que segundo ele, diz respeito ao caminho trilhado e com canções mais “enérgicas”, e o lado mão, mais melódico, apegado ao cancioneiro da música brasileira.

Ijexá
A divisão fica evidente entre a faixa que abre o álbum, Aperta o Pé, um ijexá puxado para o funk que fala do cotidiano de um trabalhador brasileiro. A transição se dá em Mirê Mirê, que contou com a participação de Gilberto Gil.

A faixa Truque apresenta a cadência do samba e dos vocais característicos de Antônio Carlos & Jocafi ao samplear a canção Diacho de Dor, da própria dupla, também gravada por Maria Creuza O caso foi de total integração. É Passapusso, mas também é Antônio Carlos e Jocafi.

“Descobri que eu, Curumin, Zé e Lucas éramos velhos e que eles eram os novos. Todas as ideias de desapego, de novidade, de além-mar, vieram deles”, lembra Passapusso.

Jocafi afirma que os ouvidos atentos ao novo que lhe chega desde o tempo de menino, quando se escutava música no alto-falante, em uma antiga Salvador. “É necessário que se aprenda a ouvir os sons que o mundo lhe mostra. O importante é fazer aquilo com que você não está acostumado. Tente, ouse, vá para frente”, diz, em tom imperativo.

Embora Alto da Maravilha estreite os laços entre Antônio Carlos, Jocafi e Passapusso, a intimidade entre eles foi sendo construída ao longo dos últimos anos. No terceiro álbum do BaianaSystem, O Futuro Não Demora, de 2019, há duas composições, Água e Salve, que unem os veteranos à nova geração. Em 2020, o single Miçanga os juntou novamente.

Religião
Passapusso, de 39 anos, diz que a dupla Antônio Carlos & Jocafi, para ele, é uma espécie de religião. O músico cita o disco Ossos do Ofício, lançado pelos dois em 1975, como uma das belezas da vida que fizeram sua cabeça. “Sempre fui apegado ao ritmo. Não bastava apenas a poesia. Tinha de ter um sotaque, algo que me fizesse pulsar”, justifica.

A partir disso, Passapusso passou a procurar quem soubesse da dupla por Salvador – eles há anos estão radicados no Rio de Janeiro. Já fazendo música, ele aproveitou a ida dos dois a Salvador para se aproximar deles.

Para Antônio Carlos, o novo parceiro já se tornou um terceiro elemento na história da dupla. “O Russo (Passapusso) entrou na nossa vida como um filho, um irmão. Somos uma dupla de três. Aliás, o nome do próximo disco, que já está com mais da metade das músicas pronta, será esse: Dupla de Três.” Jocafi adianta uma das novidades do próximo trabalho. “Um ijexá totalmente diferente criado pelo Russo. Um ritmo que vocês nunca ouviram. Ele está sempre com os olhos lá na frente”, acrescenta.

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