Quando soube que seria pai da terceira filha, Ronaldo Castro, 48, enxergou a oportunidade perfeita de homenagear a figura que melhor representa a sua fé. O baiano batizou a menina como Dulce Maria, em homenagem a Santa Dulce dos Pobres, em 2023. Suas raízes na comunidade de Alagados, onde a santa deu início aos trabalhos de caridade, fazem com que Ronaldo tenha Dulce como heroína. Agora, todos os brasileiros podem partilhar o sentimento. A lei que inclui a santa baiana no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria foi publicada na quarta-feira (17) e a consagra como uma das figuras mais importantes do país.
Ao sancionar a Lei 14.584, o presidente Lula (PT), autorizou que o nome de Santa Dulce seja incluído no Livro de Aço, abrigado no Panteão da Liberdade e da Democracia Tancredo Neves, na Praça dos Três Poderes, em Brasília. A obra leva esse nome porque é formada por páginas desse material. Nela, estão reunidos nomes de figuras que se destacaram no processo de formação do povo brasileiro ou na constituição do Estado democrático, em diferentes épocas.
Santa Dulce é a 13º pessoa nascida na Bahia a fazer parte do grupo seleto. Os baianos representam 20% de todos os 65 heróis nacionais (confira a lista completa abaixo). Entre os consagrados estão políticos, intelectuais, ativistas e religiosos. A primeira mulher inscrita no Livro de Aço foi a enfermeira baiana Anna Néri, em 2009.
(Foto: Agência Brasil) |
Para que Dulce fosse reconhecida como heroína, um longo trâmite burocrático precisou ser cumprido. Em 2016, três anos antes da canonização no Vaticano, o deputado federal Carlos Bezerra (MDB/MT) apresentou um projeto de lei que visava incluir Irmã Dulce no livro de heróis. A iniciativa foi aprovada pelos parlamentares da Câmara Federal, passou pela Comissão de Cultura e pelo plenário do Senado, até ser publicada no Diário Oficial da União, na quarta-feira.
Ronaldo Castro, que já tinha Santa Dulce como heroína da família há anos, comemorou o reconhecimento dado pelo Estado brasileiro. Nas décadas de 30 e 40, Santa Dulce caminhava pelas palafitas dos Alagados para levar comida, remédios e assistência médica aos mais pobres. O local era o mesmo em que os avós de Ronaldo moravam e familiares se recordam da presença da benfeitora.
“Vim de uma família muito pobre e ela foi a nossa grande heroína numa época em que os governantes não se preocupavam. Santa Dulce tinha uma capacidade extraordinária de levar esperança para a comunidade de Alagados. Ela que matava a fome, dava abrigo e cura”, afirma Ronaldo Castro
Há 14 anos, ele ficou ainda mais próximo da santa, quando se tornou motorista de ambulância das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid). Ao saber da relação do funcionário com Alagados, Maria Rita Pontes, superintendente da Osid e sobrinha de Santa Dulce, o convidou para trabalhar no Memorial do Anjo Bom da Bahia. Hoje ele é supervisor da equipe de guias e conta para baianos e turistas a história da vida da santa.
Nascida em Salvador em 1914, Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes, a irmã Dulce, começou a acolher pessoas em situação de rua e doentes em casa, com o apoio do pai. Quando já fazia parte da Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, no final da década de 1940, abrigou 70 enfermos em um galinheiro próximo ao Convento Santo Antônio, no episódio que marca as raízes das Obras Sociais.
A vida dedicada aos mais necessitados e dois milagres reconhecidos pela Igreja Católica, fizeram com que ela fosse proclamada Santa Dulce dos Pobres, em 2019. Ela é a única santa nascida no Brasil. Na época da canonização, o CORREIO lançou o especial Pelos Olhos de Dulce, com reportagens, e um documentário sobre a vida e obra de Irmã Dulce,.
Reconhecimento
Para o historiador e museólogo Osvaldo Gouveia, que coordenou o setor de cultura e memória da Osid durante 30 anos, o reconhecimento da santa como heroína é mais uma prova da presença de Irmã Dulce no imaginário popular, dentro e fora da Bahia.
“Santa Dulce está presente no imaginário popular como uma mulher que transcendeu questões religiosas. Ela é a personificação dos desejos do povo brasileiro de igualdade e equilíbrio social”, afirma
O historiador calcula que hoje existam mais de 300 espaços que levam o nome de Irmã Dulce no Brasil, além de mais de 80 templos religiosos com o seu nome. A cada novo reconhecimento, a continuidade do legado da santa nas Obras Sociais é fortalecida. É o que acredita Jorge Gauthier, editor de mídias e estratégia digital do CORREIO. Autor do livro Irmã Dulce: os milagres pela fé (2015, Ed. Autografia), Gauthier pesquisa sobre a trajetória de Irmã Dulce desde 2011.
“A partir dos reconhecimentos públicos, o nome de irmã Dulce volta à evidência, o que sempre acaba sendo transferido para as Obras Sociais, que até hoje auxiliam milhares de pessoas e são o grande legado de Dulce”, pontua. Anualmente, a Osid acolhe 3 milhões de pessoas por ano na Bahia e realiza cerca de 49 mil atendimentos.
Apesar da importância dos atendimentos feitos exclusivamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e sem custo para a população, a instituição passa por dificuldades financeiras. O déficit, segundo Maria Rita Pontes, é de cerca de R$2,5 milhões de reais por mês.
“Os heróis também precisam de um gás para se manterem vivos e a obra dela precisa do apoio do governo e da sociedade. Essa nova homenagem nos traz a certeza de que devemos continuar dando seguimento aos dois maiores legados de Santa Dulce: a fé e a persistência”, diz a sobrinha da santa
Conheça os outros heróis baianos
Outras 12 personagens históricas baianas já estavam inscritas nas páginas de aço do Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Eles representam 20% de todos os 65 nomes que constam no volume. Figuras históricas da Conjuração Baiana, movimento republicano, e da Independência da Bahia estão entre os consagrados, a maioria entrou para o livro em 2018. Confira:
Alferes Maria Quitéria de Jesus (reconhecida em 2018)
Heroína da guerra pela independência do Brasil na Bahia, Quitéria vestiu-se de soldado para se alistar no batalhão de “Voluntários do Príncipe Dom Pedro” e participar das lutas da Independência em solo baiano. Ela foi a primeira mulher a fazer parte do exército brasileiro, em 1822.
Anna Néri (reconhecida em 2009)
Primeira mulher inscrita no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria, foi a pioneira da enfermagem no Brasil. Prestou serviços voluntários durante a Guerra do Paraguai e montou uma enfermaria-modelo em Assunção, mesmo com poucos recursos.
João de Deus do Nascimento, Lucas Dantas de Amorim Torres, Luís Gonzaga das Virges e Manuel Faustino Santos Lira (reconhecidos em 2011)
Heróis da Conjuração Baiana, movimento popular que pretendia libertar o Brasil de Portugal, ocorrido em Salvador, em 1798. Todos foram condenados à morte pela participação no movimento revolucionário e foram enforcados no ano seguinte, na Praça da Piedade. O local abriga o busto dos quatro, como forma de homenagem.
João Francisco de Oliveira (reconhecido em 2018)
Oficial de Marinha que lutou contra as forças navais portuguesas na baía de Todos-os-Santos, na guerra naval da Independência do Brasil na Bahia.
Luís Gama (reconhecido em 2018)
Advogado, escritor e jornalista nascido em Salvador, no século XIX, ele defendeu e libertou na Justiça mais de 500 negros escravizados acusados de matar seus senhores, alegando que os escravizados agiram em legítima defesa diante da violência da escravidão. Pautou sua vida nas lutas pela abolição da escravidão e o fim da monarquia no Brasil. Em uma carta a um amigo escritor, ele afirmou ser filho de Luiza Mahin, personagem quase mítica envolvida com a Revolta Malê de 1835 e com a Sabinada.
Maria Filipa de Oliveira (reconhecida em 2018)
A heroína negra da Independência do Brasil na Bahia, entre 1822 e 1823, liderou as marisqueiras e a população pobre e preta da Ilha de Itaparica na defesa contra a invasão portuguesa. É famosa especialmente pelo episódio da queima de barcos da frota portuguesa, o que ajudou a reduzir o contingente que os baianos pró-independência enfrentariam nas águas da baía de Todos-os-Santos.
Nelson de Souza Carneiro (reconhecido em 2019)
Foi um político baiano, senador por três mandatos e ex-presidente do Senado. Nelson foi o autor da Emenda Constitucional 9, que instituiu o divórcio no Brasil, em 1977.
Ruy Barbosa (reconhecido em 2015)
Jurista, jornalista, diplomata, escritor e político. Foi o primeiro-ministro da Fazenda e da Justiça do período republicano. É patrono do Senado e da advocacia brasileira.
Sóror Joana Angélica de Jesus (reconhecida em 2018)
Foi uma religiosa e mártir da Independência do Brasil na Bahia. Joana Angélica, então abadessa do Convento da Lapa, foi morta ao tentar impedir que soldados invadissem a clausura para saquear relíquias religiosas, estuprar e matar as freiras. Ela teve o corpo transpassado pelas baionetas dos soldados ao se postar diante das portas do convento.
*Com a orientação de Monique Lôbo.