Esse caso aconteceu há três anos em Washington, nos Estados Unidos: um casal de idosos, Brian Jones e Patricia Whitney-Jones, cometeu suicídio. O motivo, explicitado numa carta encontrada pela polícia ao lado dos corpos, era em tese banal: ambos não tinham condições financeiras para arcar com o tratamento médico da mulher, portadora de uma enfermidade grave. Digo em tese porque jamais um suicídio será banal.
Há muitas maneiras de refletir sobre esse episódio, do qual só tomei conhecimento esta semana, ao ler uma notícia no Twitter. Podemos falar da facilidade com que pessoas comuns adquirem armas ou mesmo do possível abandono do casal pela família. Mas o que mais me comoveu foi mesmo a motivação para um ato tão extremo. Que grau de desespero – e ao mesmo tempo de resignação – permitiu que a decisão fosse tomada assim em conjunto, de maneira tão pragmática?
No livro Sempre a Mesma Neve e Sempre o Mesmo Tio, a escritora alemã de origem romena Herta Müller discorre sobre o ato de dar cabo da própria existência: “Um dos meus amigos que cometeu suicídio gostava mais de viver do que eu e todos os amigos juntos. Ele procurava mais do que eu pela felicidade. Ao saltar pela janela, ele não procurou pela morte, mas apenas pela saída da infelicidade constante da vida. Quero não me esquecer dessa diferença. Talvez o suicídio seja uma procura total pela felicidade. A felicidade se foi quando não suportamos mais o ficar.”
É provável que tenha sido isso o que Brian e Patricia sentiram. Eles não desejavam deixar o mundo por contra própria. Provavelmente gostavam das dores e delícias de pesar sobre a terra. Mas, diante, de uma situação tão delicada e, pior, insolúvel, viram-se diante da “infelicidade constante da vida” e trataram de buscar a saída. É como se o mundo se negasse a deixá-los continuar.
O casal suicida de Washington me fez lembrar do culto e refinado casal que protagoniza Amor, o devastador – e ao mesmo tempo profundamente compassivo – drama de Michael Haneke. A decrepitude, na forma de uma doença sem cura, que vai minando tudo que marido e mulher construíram ao longo de décadas. A decisão derradeira que é quase um grito de socorro. Trintignant e Riva, eles mesmos já velhinhos, incorporando esse momento final sem válvulas de escape.
Mas agora enveredo por outra linha de raciocínio: é pavoroso o fato de que dois idosos não tenham ao seu dispor uma rede de proteção efetiva fornecida pelo Estado. Como se sabe, os EUA não possuem um sistema de saúde equivalente ao nosso SUS. Se alguém se acidentar ou padecer de uma doença grave, precisará de uma polpuda reserva financeira. Como Brian e Patricia, milhares de velhos simplesmente não a possuem ou não conseguem pagar um seguro para se manterem saudáveis. O que lhes resta? O fim antecipado?
Negar o acesso universal à saúde é só mais uma das muitas maneiras de o Estado intrometer-se na vida do indivíduo. Só que nem sempre essa interferência se dá pela ausência, mas também pela onipresença. Volto a Herta Müller, que penou horrores sob a ditadura comunista de Nicolae Ceausescu, uma das mais brutais do século 20. Seu livro é um testemunho implacável das consequências do totalitarismo. O medo como rotina, a vida comum sendo conspurcada, a banalidade do terror. Herta foi em frente e se exilou na Alemanha Ocidental. Venceu, mas não foi fácil: “Eu reagi ao medo da morte com ânsia de viver”.
Nem todos conseguiram. Entre tantos derrotados, Herta cita o poeta vienense Theodor Kramer. Rapaz sensível, incapaz de conviver com a brutalidade, que lutou na Primeira Guerra e foi perseguido na Segunda. Kramer, que como o compatriota Stefan Zweig viu seu mundo ser dizimado
duas vezes em tão pouco tempo, devia se perguntar: qual a lógica da vida? Como encontrar, em meio a escombros, trincheiras e campos de extermínio, algum sentido para prosseguir?
Ao contrário de Zweig, que junto com a mulher optou pelo suicídio em 1942, Kramer prosseguiu, mas a um custo altíssimo: esgotamentos nervosos sucessivos, senso permanente de inadequação, algum remorso por ter sobrevivido à barbárie e a saudade da mãe, morta pelo nazismo. Ele foi mais uma daquelas existências tragadas pela Grande História, essa locomotiva desgovernada que carrega tudo a reboque sem cerimônia, mastigando pessoas e as reduzindo a nada.