Quando a americana Colleen Hoover escreveu o que viria a ser seu primeiro livro, em 2012, não tinha qualquer pretensão de fazer daquele hobby algo profissional. A então assistente social morava em um trailer com o marido e os três filhos e via seus escritos como diversão. Foi assim até o dia em que sua avó comprou um Kindle – o leitor de livros digitais da Amazon.
Na ocasião, Colleen tinha escrito Métrica, o primeiro volume da série Slammed. “Eu queria que minha avó conseguisse ler, então eu pesquisei como conseguiria transferir um documento Word para um Kindle. Foi quando eu descobri a plataforma de autopublicação da Amazon. Enviei o arquivo e, meia hora depois, a história estava à venda”, conta, em seu site oficial.
No dia seguinte, ela ligou para a mãe assustada: seis desconhecidos tinham comprado o livro. Um dia depois, já eram 60 vendas. Dentro de alguns meses, a obra tinha se tornado um best-seller. Mas nada disso se compara ao que acontece agora. Pouco mais de dez anos depois, são 28 livros publicados e mais de 20 milhões de cópias pelo mundo – o jornal americano The New York Times chegou a dizer que ela “vende mais do que a Bíblia” nos Estados Unidos.
Mesmo no Brasil, ela liderou com folga o ranking dos mais vendidos do ano passado com É Assim que Acaba, que foi comprado mais de 1,2 milhões vezes em apenas um ano, segundo levantamento da Veja. Ao todo, já foram mais de 3,6 milhões de exemplares por aqui – considerando todos os títulos.
Só que desde 2022, Colleen domina as listas de best-sellers do país de um jeito pouco visto. Ao contrário de escritores que se mantêm nas paradas com um ou dois títulos por vez, ela está entre os 50 mais vendidos da Amazon desta semana, por exemplo, com seis entradas diferentes.
Entre os 20 mais vendidos de 2023 até agora, de acordo com o Publish News, especializado na cobertura editorial, três são de Colleen. Ela é dona do segundo e do terceiro títulos – respectivamente, É Assim que Acaba e sua sequência, É Assim que Começa. Cada um vendeu pouco mais de 50 mil exemplares, enquanto o primeiro lugar do momento – Café com Deus pai, de Junior Rostirola, tem 57 mil. No ranking da Veja, que compila apenas os títulos de ficção, seis dos 20 campeões do ano são de Colleen – com É Assim que Acaba e É Assim que Começa na liderança disparada.
Diante de tudo isso, é seguro afirmar que Colleen é o maior fenômeno editorial e literário dos últimos tempos – pelo menos, desde que os últimos livros de sagas como Crepúsculo e Jogos Vorazes foram lançados, no início da década de 2010. Para entender o que está por trás de tanto sucesso, porém, não dá para deixar o Tiktok – e, mais especificamente, seu nicho literário, o Booktok – de fora da equação.
“Sem dúvida nenhuma, o fenômeno do Booktok é responsável pelos números expressivos de vendas da Colleen no Brasil e no mundo. A autora foi de vender 30 mil exemplares por livro a vender 300 mil por obra desde o ano passado por conta da plataforma”, explica Rafaella Machado, editora executiva da Galera Record, selo responsável pelas publicações da autora no país.
Consumo
Isso só é possível pela própria forma como o TikTok funciona, de acordo com a pesquisadora Thaysa Nascimento, doutora em Administração pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. O algoritmo da plataforma entrega conteúdo a partir do que o usuário gostou de assistir, sem necessariamente seguir centenas de páginas.
Foi assim que o Booktok conseguiu resgatar hábitos de consumo que andavam esquecidos para muita gente – especialmente quando se disseminou muito que os livros físicos estavam fadados ao esquecimento com o surgimento dos e-readers.
“Se tem uma coisa no Booktok, é que as pessoas não querem ficar de fora. Se ela é a autora do momento, tenho que ler a autora do momento. No caso de Colleen tem várias coisas que atraem, como a história, o formato da narrativa, o próprio final. É comum que muitos digam que não conseguem parar de ler”, diz Thaysa Nascimento, que é autora de um estudo recente sobre comunidades de consumo no Tiktok.
Uma consequência disso é que mesmo quem tem um Kindle ou outro leitor digital, no Booktok, propaga a importância dos livros físicos. Para esse público, que popularizou uma estética de estantes enormes organizadas por cores ou gêneros numa faixa etária mais jovem, os e-readers são um complemento.
Ao contrário de alguns anos atrás, em que a maioria das pessoas apenas lia um livro, a leitura do Booktok é diferente: além da estante, é comum que os leitores façam sistemas de organização e consumam produtos auxiliares, como velas aromáticas inspiradas em um personagem x ou numa obra y.
“Passa por romantizar o estilo de vida, que é uma coisa que tem vindo das plataformas. Não é à toa que itens de decoração da Shein e da Shopee fazem tanto sucesso, assim como a ideia de ser mais produtivo. A estante passa por isso, enquanto antes não tinha tanta regra”, continua.
E como aconteceu com muitas coisas, a pandemia da covid-19 também influenciou: foram dois anos em casa, com rotinas alteradas, em que a leitura ganhou mais importância para muita gente.
“Colleen vira um fenômeno dentro do TikTok principalmente pelo É Assim que Acaba, que viraliza primeiro. É muito comum, quando um livro chama muita atenção, que outros venham na sequência porque as pessoas querem descobrir mais, querem uma parte dois”, analisa a pesquisadora.
Começou assim
Por isso mesmo, não dá para ignorar o ponto fora da curva que foi o livro mais vendido do país no ano passado. Para começar, É Assim que Acaba nem mesmo é um lançamento: foi publicado nos Estados Unidos em 2016 e chegou ao Brasil dois anos depois. Ou seja, estava por aí há quase cinco anos.
Outros livros dela já eram vendidos aqui desde 2013, de acordo com a editora executiva da Galera Record, Rafaella Machado. “É incrível notar o quanto ela amadureceu como autora de lá para cá, abordando assuntos mais espinhosos como o da violência doméstica, relações abusivas e mulheres complexas que vivem essas situações com cautela e autenticidade”, pontua.
A diferença é justamente a viralização de É Assim que Acaba no Booktok, em 2022. O movimento e o alcance dos tiktokers foi tão grande que, em outubro passado, Colleen lançou uma sequência não planejada originalmente – É Assim que Começa, não por acaso o terceiro livro mais vendido do país este ano até então.
É Assim que Acaba ganhou uma sequência no ano passado. Os dois são os livros mais vendidos de Colleen (Imagens: Reprodução) |
Uma das trends – correntes de tendência, com vídeos semelhantes que são replicados – que pode ter impulsionado isso era de pessoas se gravando enquanto liam um livro por 24 horas. “A galera gravava lendo o É Assim que Acaba aos prantos. Esses vídeos foram viralizando cada vez mais. Eu dizia ‘não é possível que esse livro seja tão triste e que todo mundo saia chorando sempre. Eu li e chorei e olha que não choro com livro”, lembra o booktoker Ivan Neto, 21 anos, da página @literaneto.
Tendo lido quatro livros de Colleen, ele próprio decidiu buscar mais a autora devido ao TikTok, ainda que tivesse ouvido falar dela por meio do chamado Booktube – o nicho de criadores sobre literatura do YouTube. Por lá, Colleen já aparecia vez ou outra. Foi graças a esse público inicial que ela chegou a visitar o Brasil ainda em 2015. Porém, nada como se vê hoje.
“Acho que ela faz muito sucesso porque você consegue se identificar com aquele livro e ela sempre mescla com romance. No caso do É Assim que Acaba, acho que é principalmente pelo conteúdo de sofrência. Tem muitas passagens fortes, tristes. São temas de identificação para mulheres que já passaram por isso ou conhecem quem passou. Também que vejo que se popularizaram muito no Booktok os livros tristes”, opina Ivan.
É Assim que Acaba difere de muitos livros que ganham destaque na literatura conhecida como New Adult – em que protagonistas têm de 18 a 30 anos. A obra conta a história de Lily, uma florista que se apaixona por um neurocirurgião aparentemente perfeito. No entanto, depois que os dois se casam, ela se vê em meio a um relacionamento abusivo e vítima de violência doméstica.
O livro é levemente inspirado na vida da mãe da própria Colleen Hoover, com direito a uma carta da autora aos leitores. Na história, que está sendo adaptada para o cinema com Blake Lively (Gossip Girl) no papel principal, Lily redescobre o amor com o chef Atlas, que conheceu na adolescência. A lista de leitores pelo mundo inclui nomes como Kylie Jenner, uma das pessoas mais seguidas no mundo no Instagram, com 393 milhões de seguidores.
A estudante Clarice França, 17, foi uma das que foi influenciada a ler o livro depois que tanto conteúdo a respeito dele despertou sua atenção. Na época, amigas também já conheciam a história e fizeram a mesma recomendação. “Achei muito interessante, complexo, diferente do que eu estava acostumada a ler. As descrições das agressões e dos pensamentos dos personagens trouxeram um peso e uma emoção”, conta.
Por enquanto, foi o único título de Colleen que leu, mas já se prepara para seus outros nomes. “A escrita e a forma como a história foi construída fizeram com que eu sentisse um mix de sentimentos. Foi bastante imersivo”, acrescenta.
Atenção
Já 2023 começou com o “cancelamento” da autora. Na segunda semana do ano, ela anunciou uma edição de É Assim que Acaba como livro de colorir e foi duramente criticada por leitores, já que a obra tem cenas de agressão e estupro. Dias depois, disse que cancelaria o projeto. “Eu os ouvi e concordo com vocês. Não tem justificativas”, declarou, na ocasião.
Para a booktoker Roberta Natal, 24, do perfil @livrosdaro, as polêmicas acabam impulsionando também as vendas dos livros, aumentando o número de leitores tanto pela curiosidade quanto pela vontade de conhecê-la.
“(Acaba) dividindo o público entre os que amam e os que não gostam tanto da experiência mas que de qualquer forma geram um engajamento gigantesco”, avalia.
Roberta já leu 18 livros de Colleen e diz que, no caso da autora, o que acontece é que quando alguém termina uma leitura, vai automaticamente em busca de outro livro dela. “Acredito que por ela ter trabalhado como assistente social antes de se tornar um fenômeno mundial isso a tenha ajudado muito a escrever seus livros, já que eles abordam histórias bem próximas da nossa realidade”.
O poder e o alcance do Booktok, em sua opinião, ajudam no crescimento do mercado literário, já que é uma das principais formas de recomendação de novos livros. “Acredito que os influencers literários têm uma parcela muito grande no sucesso e aumento de vendas que o mercado editorial tem conquistado, principalmente pela autenticidade, criatividade e empenho dos booktokers”, completa.
Hoje, o Booktok tem fenômenos próprios. Das livrarias à Amazon, é possível encontrar prateleiras com os “escolhidos do TikTok” ou livros vendidos como “sucesso do Tiktok”. Além de Colleen, há outras autoras frequentemente associadas à plataforma nos locais de venda, como Taylor Jenkins Reid, de Os Sete Maridos de Evelyn Hugo, e Ali Hazelwood, de A Hipótese do Amor.
“Se a gente está falando de um público de 18 a 35 anos, eu diria que o Booktok pode ter um impacto de até mais de 50, 60% nas escolhas de livros”, opina a pesquisadora Thaysa Nascimento.
O sucesso de um livro sempre esteve relacionado ao boca a boca. E, na maior parte do tempo, levava um tempo até que uma obra se tornasse best-seller, como lembra a editora executiva da Galera Record, Rafaella Machado.
“A diferença nesse caso é o algoritmo do TikTok, que fez com que a ascensão dessa curva ficasse mais drástica. Sem o TikTok, o livro teria uma curva de vendas alta para os padrões brasileiros, mas estável. Com a viralização da plataforma, foi meteórica”.
Hoje, os leitores que ficaram obcecados pela autora são os mais diversos possíveis. Segundo Rafaella, tem gente de 18 a 80 anos, com diferentes perfis. Mas a própria Colleen também tem esse mérito: tem títulos para todos os gostos. Há desde drama e romance, tanto para adultos quanto para adolescentes, quanto thriller e sobrenatural.
“Colleen é uma espécie de Anitta da escrita. Gosta de brincar com diferentes estilos e gêneros de literatura. Já flertou com o thriller, com os sobrenaturais, com o juvenil, o drama e o romance. Já fez parceria com outras autoras para chegar em leitores de outros nichos e essa estratégia faz com que ela acumule fãs nos polos mais opostos da literatura pop”, completa.