Deixei o meu coração na Liberdade, na ruazinha acidentada do bairro onde ficava o centro espírita que, em minha memória, rebatizei como Terno dos Astros. O Terno dos Astros foi em sonhos que inventei. Um dia criei um autor. No outro decidi escrever. A mesma força movia as duas invenções. Autoengano, talvez.
Estava reunindo os pedaços daquilo que fui, como quem cata os cacos de uma peça de cerâmica estilhaçada no chão. Fazia esse movimento com muito cuidado, não para devolver alguma inteireza ao vaso, mas, para proteger os outros. Um dos fragmentos me feriu. Peço perdão aos que também saíram machucados.
Eu havia sido um peixe no aquário até então. Vivia com a cabeça mergulhada na água, de modo que respirar se assemelhava ao caldo que nos pega na beira do mar e nos arrasta ao fundo. É preciso paciência. O luto não tem pressa. A perda instaura seus modos no cotidiano, estranha bandeira tremulando em novo território.
Um dia a esperança. No outro a dança das sombras. Visitas a cômodos vazios, abrir e fechar de guarda-roupas. Caça de lembranças, réstias de cheiros, fotos, músicas. Fomos juntas ao centro, eu e minha irmã, em busca de sossego. Era novo ainda, o nosso luto. E nunca se pode prever quando (quanto) amadurecerá por dentro.
Lembro o exato momento em que me senti verdadeiramente só. Eu havia perdido a data da matrícula na faculdade e, enquanto aguardava o amigo que sempre me salvava desses esquecimentos, vi-me de repente no pátio do Instituto de Letras com aquela sensação de estranhamento. Sem pai nem mãe no mundo.
Foi então que, no rádio de pilha da banca do baleiro, tocou Alegria Alegria, de Caetano. E era quase dezembro como na canção. Olhei para as minhas mãos vazias, minha memória cada vez mais seletiva. Meu coração. Deixei o meu coração na Liberdade, no Terno dos Astros, os pés mergulhados em um rio que divide percursos. As águas, as folhas trazidas da feira, abrindo caminhos em um corpo órfão.