Em folhas em branco, nos encontros da última semana, crianças desenhavam, escreviam mensagens ou coloriam de vermelho corações que dariam no Dia das Mães. Elas compartilham os dias, já que ficam das 13h às 16h naquela sala improvisada como creche e escola, e as histórias: são de famílias de trabalhadoras domésticas que não tinham com quem deixar o rebento.
As crianças surgem no portão pouco antes das 13h, acompanhadas de algum adulto. Só voltam para casa quando forem buscá-las. A ideia do projeto, criado pelo Coletivo Creuza de Oliveira, em Mata Escura, é oferecer um lugar seguro para filhos de trabalhadoras domésticas e mulheres desamparadas por rede de apoio – familiar ou do Estado – enquanto elas estiverem no serviço.
A sala das crianças fica na entrada da sede do coletivo, alocado dentro da casa de Milca Martins, criadora do coletivo e trabalhadora doméstica. Há um quadro branco e duas mesas – uma de plástico, outra de madeira – por onde se distribuem meninos e meninas.
Pelas paredes, ficam espalhados projetos desenvolvidos por elas. Em uma delas, estão desenhos: flores, arco-íris, casas com árvores coloridas em um dia ensolarado.
Desenhos das crianças atendidas pelo projeto (Foto: Vanessa Gandu/Divulgação) |
A demanda por esse espaço surgiu nas reuniões do coletivo. No último domingo de cada mês, as integrantes se encontram para conversar sobre uma variedade de temas, como violência de gênero e direitos trabalhistas.
Algumas faltavam ao encontro por não ter com quem deixar os filhos. Quem ia também falava sobre as dificuldades de sair para trabalhar em outras casas, às vezes na lida com crianças, sem ter amparo para os próprios filhos.
Com dificuldade para encontrar escolas ou creches gratuitas em tempo de integral, meninos e meninas ficavam sob “as vistas” de alguma vizinha (que cobram algum valor pela atividade) ou sozinhas.
“A gente percebeu que era necessário, precisávamos de um suporte para essas mulheres. Porque a criança ficava na escola ou creche de manhã, mas e depois? Ficam em vulnerabilidade. A situação nos bairros periféricos não está fácil, a gente sabia que precisava de um lugar assim”, compartilha Milca.
A primeira turma foi aberta em 2019, com a proposta de reforço escolar e atividades lúdicas. Foram 10 crianças, com idades entre 5 e 10 anos. Mas a pandemia atrapalhou o projeto, retomado em março deste ano, com a terceira turma.
‘Mulheres vão se ajudando’
Hoje, 15 crianças frequentam o espaço – a mais nova tem 5 anos, o mais velho, 8. A neta de Cristina de Jesus, 44, é uma delas. Sara, 6, adora as tardes de reforço escolar, porque poder ver e brincar com os colegas. À noite, quando retorna para casa, ela diz que gosta de assistir televisão e comer uma “pipoquinha” preparada pela mãe, Ana Kelly, educadora social.
“Se não fosse por isso aqui, muita gente não teria com quem deixar seu filho, sua filha. As mulheres vão se ajudando, sem ajuda de governo, sem ajuda de nada. Aqui as crianças estão seguras e nós nos sentimos seguras, porque é um lugar de aprender, de união”, diz Cristina, filha de trabalhadora doméstica que seguiu o caminho profissional da mãe.
Ela é uma das 65 integrantes do coletivo, que surgiu em 2016, com objetivo de aproximar trabalhadoras domésticas de Mata Escura e vizinhança dos debates da categoria de trabalho.
Até então, elas se encontravam nas reuniões do Sindicato de Trabalhadoras Domésticas, que aconteciam no centro da cidade. Muitas delas não iam aos encontros, por não poder investir no transporte público até o local.
Da esq. para a dir.: Arlete, professora do projeto, Cristina, e Milca Martins (Foto: Vanessa Gandu/Divulgação) |
A demanda de trabalhadoras doméstico por um espaço para seus filhos pequenos não era bem uma novidade quando surgiu como pauta nas reuniões dominicais no coletivo. Todas compartilham memórias sobre a época em que não tinham com quem deixar os filhos para irem trabalhar ou de quando acompanhavam as próprias mães no trabalho.
Na infância, por exemplo, Cristina ia com a mãe para o trabalho – e considera isso até uma sorte, diante das possibilidades.
As mulheres são maioria no trabalho doméstico remunerado no Brasil. Segundo o Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas (Dieese), elas são 92% das pessoas ocupadas nesse tipo de serviço no país. Dessa porcentagem, 65% são mulheres negras, com renda média inferior a um salário-mínimo.
Essas estatísticas não demonstram a solidão cotidiana de parte dessas mulheres na criação dos filhos. Das crianças atendidas pelo projeto, por exemplo, só três têm contato com o pai.
Essa realidade se reflete, por exemplo, no crescimento da demanda de mães pelo projeto do coletivo Creuza Oliveira. Há 10 crianças na lista de espera, o que revela, ainda, a dificuldade de encontrar apoio do poder público, em creches e escolas de tempo integral.
Entre aquelas que são atendidas atualmente, 10 são filhas de trabalhadoras domésticas e o restante de mulheres que trabalham em atividades informais, como catadoras de material reciclável.
A Secretaria Municipal de Educação de Salvador não respondeu às dúvidas da reportagem sobre a quantidade de espaços que recebem crianças tempo integral, em Salvador, nem quanto à demanda reprimida de mães e pais.
“Temos associações de moradores, mas geralmente são geridas por homens. Eles se importam em se juntar para organizar baba [partida de futebol], organizar o domino. Aí as coisas funcionam. Mas se a gente pedir um trabalho desse como o que estamos fazendo, sempre estará com problema”, opina Milca.
Ela própria, seis meses depois de parir, recorria a uma vizinha para que o filho não ficasse sozinho. O pai da criança era presente, mas também trabalhava fora de casa. “Ele só mamava de noite ou final de semana. Eu dava mingau, comida de panela”, recorda. No trabalho, amamentava a filha da patroa da época.
O filho, na primeira infância, passou a acompanhá-la no serviço. “Mas hoje ninguém aceita isso. As crianças vão ficar com quem? É muito difícil encontrar creche, escola integral”, conta.
Para tirar do papel o projeto de criar um projeto educativo para crianças, era preciso encontrar uma professora. Milca recorreu a uma vizinha de bairro que conheceu logo quando ela chegou ao endereço – uma professora com nível de magistério chamada Arlete.
A educação
Quando deixou Conceição do Almeida, no Recôncavo Baiano, para morar em Salvador, no bairro de Mata Escura, Arlete Vieira de Jesus, 43, tinha 18 anos. Embora quisesse cursar pedagogia na faculdade, Arlete precisou buscar uma renda e começou como trabalhadora doméstica: passou a fazer diárias de faxina.
No ano seguinte, ela teve um filho. Arlete criou o menino com ajuda da mãe, que também trabalhava em casas de família, e de vizinhas, porque o pai fugiu das responsabilidades.
Crianças preparam lembranças para o Dia das Mães (Foto: Vanessa Gandu/Divulgação) |
Ao receber o convite de Milca para participar do projeto com as crianças, Arlete pensou que seria um “desafio”. Pouco antes, ela tinha trabalhado como assistente em uma creche, além de atuar no bairro como professora de reforço escolar. A parceria vingou e Arlete é professora no espaço desde a primeira turma.
“As crianças têm idades diferentes, personalidades diferentes, mas eu faço um plano que consiga atender as diferenças de cada um. Procuro me importar com a vida deles, cobrar, porque as vezes é isso que faz falta, lá na frente, para uma criança”.
Para Arlete, é importante que as crianças tenham o momento de revisar os assuntos da escola e de brincar. A professora e as voluntárias – cinco voluntárias se revezam, semanalmente, para dar suporte às atividades – tentam amenizar o cenário de estresse cotidiano imposto, como a violência do entorno.
“Procuramos não passar estresse para eles. Aqui eles se sentem bem, estão passando um tempo de qualidade”.
O lugar das aulas possui o que as próprias mulheres conseguiram comprar, com campanhas de doações entre elas. Mas o lugar carece de mais cadeiras, mesas, materiais escolar e doações para ampliação do espaço e expansão das atividades – no fim da reportagem, há detalhes de como ajudar.
No Dia do Trabalhador, no último dia 1º, a professora pediu aos meninos e meninas que desenhassem profissões que gostavam. Apareceram aspirantes a mecânicos, vendedores, médicos, advogados, engenheiros, bombeiros – diversidade típica da sutileza infantil, que não distingue simplicidade de luxo.
A professora sempre diz aos alunos “Saiba do que vocês são capazes, vocês são capazes e podem desenvolver. Não desistam dos seus sonhos”. Ela própria não desistiu do dela: tornar-se pedagoga diplomada.
SAIBA COMO DOAR PARA O PROJETO OU AJUDAR NAS ATIVIDADES
Site do coletivo Creuza de Oliveira: https://www.coletivocreuzaoliveira.com.br
Contato telefônico: (71) 98483-6562
Email: [email protected]