InícioEntretenimentoCelebridadeVai comer quietinho ou prefere postar tudo no Carnaval?

Vai comer quietinho ou prefere postar tudo no Carnaval?

Se nossas peripécias durante o Carnaval forem determinantes para assegurar um lugar no paraíso, nem me darei ao trabalho de ir até a porta do céu. Desço direto, sem escala. Minha única esperança é Deus não ser tão onipresente assim e precisar de provas para comprovar as besteiras que fizemos nesta folia tentadora, mas que destrói dignidades. O Todo Poderoso não teria como me condenar, por exemplo, pelo que fiz naquele Carnaval de 2006. Não tem nada registrado, só lembranças (de algumas coisas, o álcool também causa amnésia). Hoje, não. Fazer as coisas na cocó está correndo sérios riscos de extinção, principalmente nesta edição carnavalesca, onde a abstinência chega a dois anos por conta da pandemia. Todo mundo quer extravasar e registrar tudo, sem medo da viralização, da vergonha alheia ou do meme, acumulando provas para o dia do juízo final. Afinal, você é do bloco da entoca ou também vai se ‘amostrar’ nas redes sociais?

Nada contra, mas nossa condição atual de postar tudo está desconstruindo totalmente a origem e a intenção do anonimato no Carnaval. É, sim. A festa foi feita para fazer o que a gente não pode fazer durante o ano (e que até Deus duvida), mas na entoca. Não à toa, a máscara é o símbolo do Carnaval no mundo. E pelo visto nem máscara contra a covid-19 o povo quer mais usar. Como esconder as peripécias, ninguém sabe. O mistério carnavalesco foi substituído pelas lives e tik toks intermináveis que não deixam ninguém mais comer quietinho. Especialistas do Carnaval popular garantem que um patrimônio da folia baiana está perto do fim com tantos celulares na rua. 

“Esta superexposição nas redes sociais é uma ameaça à instituição do zignal, que é uma coisa preciosa no Carnaval, deveria ser tombada, registrada como patrimônio imaterial da folia. O zignal é o pai do vale night, mas sem permissão do parceiro ou da parceira. É dizer que vai visitar um parente e se picar pra rua, se perder na multidão, não ser achado. Mas como fazer isso com todo mundo registrando tudo? Você faz uma coisa aqui, um amigo da mulher ou do marido registra e manda pro zap: ‘não queria te incomodar, mas olha quem tá aqui’. Difícil, né?”, disse Milton Moura, professor de história da Ufba, doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea, especialista em festas populares e, sobretudo, um carnavalesco raiz.

“Vamos deixar o vale night acabar? Tem que saber o que será postado, bicho. Observe as marchinhas e músicas de Carnaval. Caetano já cantava: ‘Não se perca de mim, não se esqueça de mim, não desapareça…’ É pra desaparecer mesmo, sumir no mundo. Hoje, vivemos um momento invertido, onde as pessoas querem aparecer e serem encontradas”, completa Milton. 

“Essa geração gosta de se identificar e acompanhar tudo. Seria a hiper experiência, se perde a noção de ubiquidade e não ocupamos mais apenas o mesmo lugar no espaço. Estou curtindo ali, mas olho onde outras pessoas estão, o que estão fazendo. Mostrar aos seus seguidores onde você está e o que está fazendo. Fala a verdade: você faria as coisas que fez no passado, sabendo que hoje tudo é registrado?”, acrescenta. 

De fato, a experiência é outra. A superexposição é um paradoxo se puxarmos a história original do Carnaval. O primórdio do nosso Carnaval vem da Roma Antiga, quando ainda se chamava Saturnálias, uma homenagem ao deus Saturno. Na época, escravos eram liberados e nada funcionava, apenas os departamentos de orgias e bebedeira.  Mas pegava mal ser visto em tais condições, até que surgiu, em Veneza, na Itália, a figura das máscaras como  Pierrot e  Colombina, personagens da Commedia dell’Arte. A partir dali, poderia pegar aquele vizinho no anonimato. Contudo, o curso da história mudou com a atualidade.

Influenciadores 

Não é nenhuma novidade ter as redes sociais fazendo parte da folia momesca. Mas pare e pense sobre o caldeirão fervilhante que teremos em 2023. Este Carnaval será um turbilhão de expectativas e empolgações: dois anos sem festa e um desejo acumulado, doido pra extravasar. Junte isso a cada folião com o celular pronto para fazer uma live ou registrar alguém dando mole. 

Em 2020, último ano que tivemos a folia mais popular do planeta, a hashtag #carnaval2020 registrou 2.983 milhões de publicações no Instagram, em todo país. Olhe que o TikTok ainda não era este sucesso atual. Só este ano, #carnaval2023 já conta com 566 mil postagens, na mesma rede social de 2020. No TikTok, a mesma  hashtag deste ano conta com 334 milhões de visualizações. Olha que, pelo menos oficialmente, a festa nem começou. Claro, este impulsionamento tem ajudinha: os influencers. 

Mariana Andrade sabe da exposição que estará submetida no carnaval, mas vai aproveitar para engajar com seus mais de 116 mil seguidores no Instagram

“Meu público quer saber o que vou fazer, onde está melhor para curtir o Carnaval e o que consumir. Mas é óbvio que vou aprontar e nem tudo precisa ser postado. O meu medo mesmo não é o que publico, mas o que podem publicar de mim, me pegar num vacilo e publicar. O Carnaval, apesar de mais moderno, ainda tem a filosofia que ninguém é de ninguém. Tentarei me esconder, sim”, disse um influenciador baiano, com mais de 500 mil seguidores, que pediu anonimato. Ele é casado. 

Já a influenciadora Hela Cerqut não se esconde dentro da máscara, mas sabe que não dá para aprontar como aprontava nos tempos em que a TV era o único perigo de flagrante. 

“Quando eu era mais nova, com uns 12 anos, já morava perto do circuito do Carnaval e dizia para minha mãe que ia na porta do prédio ver o movimento das pessoas passando, mas a verdade é que eu ia parar lá na Barra com minhas amigas, no meio da pipoca, da folia! O único cuidado que a gente precisava ter era com as câmeras das emissoras de TV, que eram poucas e todo mundo sabia onde ficava. Hoje, todo folião tem uma câmera na mão! Ainda bem que eu já sou maior de idade…”, lembra.

Jornalista e influenciadora digital, Mariana Andrade (@mariana.andradde) se prepara para seu primeiro Carnaval na condição de influencer. Nos anos anteriores, trabalhou como assessora. Agora, está no papel de destaque, sabe que pode haver exposição, mas não se importa muito. Ela vai buscar a espontaneidade e o engajamento. “Era um trabalho muito mais privado, mais sério, não era como agora que eu posso curtir enquanto trabalho, que posso dançar, posso estar na folia e mostrando isso, né? Vou estar nos camarotes, então a minha visão vai ser massa porque vou poder inspirar as minhas seguidoras, a maioria mulheres pretas, da importância de ocuparmos esses espaços”.

Contudo, é preciso ter cuidado com o que posta. “A ofensa ao direito de imagem se materializa com a mera utilização da imagem da pessoa que não autorizou aquilo, mesmo que não viole a honra e intimidade da pessoa, desde que aquele conteúdo publicado seja capaz de individualizar aquele indivíduo exibido. Haverá a obrigação da reparação”, pondera o advogado e autor do livro Sistema Jurídico Aplicado no Carnaval, Otto Pipolo. Traduzindo: quer postar, poste suas próprias desgraças. Jamais do próximo. 

O Carnaval, como manifestação espontânea, sempre estará no bloquinho do que é novo e está em evidência. É o comportamento carnavalesco dentro do contexto contemporâneo. Algumas coisas, como o anonimato, vão ficar no passado e não adianta chorar por privacidade para fazer suas loucuras. Pode fazer, mas a exposição pode ocorrer. Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e especialista em influenciadores digitais, Issaaf Karhawi acredita que o Carnaval não vai fugir do que já está no nosso cotidiano, em que publicamos desde a malhação até o almoço do dia. 

“Quando a gente olha pra exposição a partir de questões sociais, ela está amparada em uma lógica de construção dos sujeitos contemporâneos. O que isso significa? Hoje, pra você ser um sujeito bem inserido, encaixado socialmente, é preciso que faça parte de um imperativo da visibilidade”, explica Issaaf. 

“Quando alguém publica uma foto do Carnaval, supostamente íntima, o que essa pessoa está fazendo é entrar nessa lógica da visibilidade contemporânea. Um sujeito bem inserido socialmente é aquele capaz de tornar a sua vida visível”, completa a doutora, que faz apenas uma diferença entre os meros mortais e os influenciadores: a monetização desta suposta exposição íntima.

A música, a sexualidade ou a exposição podem mudar com o tempo. Ou se mantém viva, apenas com uma linguagem diferente. Quer uma comparação? Não há nenhuma novidade na letra que concorre a música do Carnaval, do Polêmico, em que existe o refrão ‘Deixa eu botar meu boneco (lá ele), Toma, toma, toma’. 

Hela Cerqut quer mostrar um ângulo diferente do carnaval para seus seguidores

“A primeira canção que foi gravada oficialmente no Brasil é de um baiano chamado Xisto Bahia (em 1902) e se chama ‘Isto É Bom’, uma marchinha de Carnaval.  Sabe como é a letra? ‘Isto é bom, isto é bom, isto é bom que dói. Ouçam bem que o buraco véio tem cobra dentro”, lembra o cantor e compositor baiano, Antônio Paquito. “O Carnaval leva a sociedade para níveis extremos, seja numa letra da música, no comportamento ou no nível de exposição. É muito complexo”, completa. 

Aquele carnaval

É o fim, então, da Noite dos Mascarados? Não importa. O Carnaval se reinventa e acompanha o futuro. É se permitir, seja no anonimato ou não. “Eu tenho muita saudade dos carnavais antigos, da minha juventude. Mas dizer que o meu tempo era melhor que o atual e convencer o jovem de que meu Carnaval anônimo é melhor que o dele mais exposto é uma  perversidade autoritária brutal. Hoje podemos mostrar para nosso amigo em Bangkok, ao vivo, o que estamos curtindo na Avenida. Sacanear com ele, mostrar o que ele está perdendo. Não perdemos as máscaras. Elas se tornaram virtuais”, garante Paulo Miguez, doutor em Comunicação e Culturas Contemporâneas e reitor da Ufba. 

Para Miguez, o Carnaval é o baixo ventre, a composição carnal, a gordura, o suor, é a explosão do desejo. Claro, quando recíproco. É como diz o pensamento da escola filosófica baiana da Companhia do Pagode: “Tira, tudo que é bonito é pra se mostrar”. Paulo só aconselha não sair em três blocos: o da pureza, do fundamentalismo e da saudade. “Corra destes blocos. esta ideia de pureza, que o Carnaval é exposição, é o nu. Se saia. É a festa do libido, sabendo que o não é não. Nada de fundamentalismo, tampouco de saudade. O que passou é lembrança. Vamos curtir o que o Carnaval nos oferece hoje”, completa. 

Talvez, só talvez, uma exposição do passado poderia trazer revelações que até hoje só estão na lembrança. Ah, aquele Carnaval de 2006… Naquele sábado de Carnaval, disse a minha namoradinha da época (se tiver lendo isso, foi mal) que precisaria ver minha avó, que estava doente em Jauá. Zignow! Me vesti de Mulher Maravilha e fui para Ondina com amigos e primos. 

Acordei, não sei como, sozinho num apartamento no Doron. Olhei se ainda estava com meu rim, mas ao meu lado só tinha um bilhete: ‘Precisei trabalhar, mas fiz café. Beijo’. Não me lembrava de nada. O problema foi voltar para casa com a fantasia de Mulher Maravilha. Na cara de pau, bati na porta do vizinho e pedi uma roupa emprestada para um rapaz com o dobro do meu tamanho. Ele riu, mas não tinha celular para registrar. Na verdade, existem algumas fotos que alguém tirou antes do caos se instaurar. O resto é lembrança e resenha. “Seja você quem for, seja o que Deus quiser…”

O Correio Folia tem patrocínio da Clínica Delfin, apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador e apoio da Jotagê e AJL.

Bonus:

Um dos raros registros do nosso repórter no carnaval de 2006. Viraria meme hoje?

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